Da Redação
Ao longo dos séculos de regime escravocrata no Brasil Colônia e no Brasil Império, a historiografia tradicional frequentemente negligenciou uma parte essencial dessa realidade: a escravidão dos povos indígenas. Se é amplamente conhecido que cerca de 5 milhões de africanos foram trazidos de forma compulsória para trabalhar como escravizados, pouco se fala sobre os milhares — talvez milhões — de indígenas submetidos à mesma sorte.
Escravidão Indígena: Realidade Esquecida
Historiadores contemporâneos têm se debruçado sobre essa vertente da exploração colonial, revelando que a escravidão indígena esteve presente em todo o território que hoje constitui o Brasil. Em muitos casos, ela ocorreu de forma disfarçada; em outros, de modo quase idêntico à escravidão africana.
Segundo a historiadora Luma Ribeiro Prado, pesquisadora da USP e autora de Cativas Litigantes, é fundamental ensinar nas escolas sobre a escravidão indígena, para compreendermos a multiplicidade da formação do Brasil e das opressões que marcaram sua história.
O Mito da Preguiça e o Racismo Histórico
O historiador João Paulo Peixoto Costa, da Universidade Estadual do Piauí, aponta que muitos estudantes ainda aprendem que os indígenas eram preguiçosos e, por isso, teriam sido substituídos por africanos. "Isso é racismo puro", afirma. A escravização de indígenas foi marcada por violência e resistência, assim como a dos africanos.
Leis, Guerra Justa e a Certidão de Cativeiro
Desde a chegada dos portugueses, a mão de obra indígena foi utilizada de forma compulsória. A primeira legislação da Coroa Portuguesa contra a escravização indígena é de 1570, e só a permitia em casos de "guerra justa" — um conceito oriundo do direito romano que autorizava o cativeiro de indígenas considerados hostis, canibais ou que resistissem à catequese.
Segundo Prado, havia um processo legal montado para justificar o cativeiro. Indígenas capturados eram levados ao curral e depois ao arraial, onde passavam por um exame conduzido por jesuítas. Se o indígena fosse considerado resgatado de um ritual antropofágico, era emitida uma “certidão de cativeiro”, que legalizava sua escravização.
Contradições da Igreja e da Coroa
A atuação da Igreja Católica foi ambígua. Embora declarasse que os indígenas tinham alma e não deveriam ser escravizados, os aldeamentos religiosos funcionavam como verdadeiras estruturas de trabalho forçado. Segundo a historiadora Márcia Mura, mesmo nos espaços administrados por jesuítas, havia castigos físicos e os indígenas trabalhavam para sustentar o clero.
Em 1680, foram publicadas duas decisões conflitantes: uma portaria que libertava os indígenas e um alvará que autorizava a vinda de missionários jesuítas, reforçando o controle sobre os povos originários.
Alianças e Estratégias Coloniais
Durante a colonização, os portugueses formaram alianças com certos grupos indígenas ("amigos"), ao mesmo tempo em que escravizavam outros ("inimigos"). Muitas vezes, essas alianças eram exploradas para capturar outros povos indígenas com o auxílio dos "amigos".
Segundo Costa, a necessidade de expansão territorial no século XVII, somada à crise do açúcar, intensificou a busca por mão de obra indígena no interior do país. Nessas regiões, a exploração era mais intensa, especialmente onde os colonos não tinham recursos para adquirir africanos escravizados.
A Lei de 1755 e a Contradição da Liberdade
A lei de 6 de junho de 1755 foi um marco importante, pois proibia a escravização de indígenas e os reconhecia como súditos livres do império português. Contudo, essa liberdade era ambígua, já que continuavam sob tutela e muitas práticas de trabalho forçado persistiam, especialmente em aldeamentos religiosos.
O historiador Ronaldo Vainfas, no Dicionário do Brasil Colonial, destaca que essa legislação visava garantir mão de obra livre para defesa de fronteiras e incentivo à agricultura. No entanto, a prática da escravização clandestina continuava em larga escala.
A Disputa pelo Monopólio da Mão de Obra
Prado afirma que cerca de 80% da escravização indígena era ilegal. Colonos evitavam regulamentações para não pagar impostos à Coroa. Chegavam a invadir aldeias religiosas para capturar indígenas. Ao mesmo tempo, os jesuítas mantinham os indígenas em trabalho compulsório sob o pretexto da catequese.
A Coroa, por sua vez, buscava taxar essa atividade, mas sua ação era limitada pelo comércio organizado de escravos africanos.
A Preferência por Africanos: Uma Questão Econômica
Segundo o historiador Renato Pinto Venancio, havia uma preferência pelos africanos por razões técnicas e econômicas. Eles vinham de sociedades com conhecimento em agricultura, mineração e metalurgia — habilidades valorizadas nas plantations e nas minas. Por isso, onde havia recursos, preferia-se o escravizado africano.
Nas regiões mais pobres, como São Paulo, Maranhão e Amazônia, onde os colonos não tinham condições de adquirir africanos, recorreu-se mais intensamente à escravização indígena.
Memória, Reconhecimento e Resistência
A escravidão indígena foi uma realidade marcante e silenciada na história do Brasil. Não apenas revela a complexidade das relações coloniais, mas também evidencia o racismo estrutural e a exploração sistemática dos povos originários.
É papel da sociedade — e, sobretudo, das instituições educacionais — reconhecer, divulgar e debater esse passado para que se construa uma memória coletiva mais justa e plural.
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