Por João Anatalino
Simão Cirineu é um dos mais enigmáticos personagens do Novo Testamento. Nenhum autor, até hoje, por mais imaginação que tivesse, conseguiu criar para esse figurante uma biografia interessante, como as que já foram criadas para outros personagens que aparecem, acidental ou incidentalmente, no drama de Jesus.
De fato, Simão Cirineu não parece ser um personagem que aparece por
acidente nessa história. Não é um sujeito que, conforme diz o evangelista
Marcos, passava por ali por acaso e topou com o cortejo dos três condenados a
caminho do Gólgota.
E porque teria sido ele, o Cirineu, escolhido para carregar a cruz até o
alto do monte, em meio à uma multidão que se aglomerava nas estreitas ruas de
Jerusalém, como em dias de quermesse, para ver passar a procissão dos infelizes
condenados? De certo, muitos outros homens haveriam naquela turba, que poderiam
realizar esse trabalho.
Seria porque o Cirineu, homem parrudo, afeito ao trabalho no campo, era
um sujeito forte e mostrava, em sua postura não verbal, sentir uma grande pena
daquele homem, com o corpo destroçado, arrastando aquela pesada trave pelas
íngremes vielas de Jerusalém, caindo em cada esquina, ferindo-se ainda mais em
cada queda?
Talvez seja essa a resposta, já que a piedade é uma das maiores virtudes
do ser humano e o evangelista quis aproveitar a oportunidade para passar essa
ideia. O próprio Jesus havia pregado esse princípio na sua famosa parábola do
Bom Samaritano. Próximo é quem nos ajuda na hora da necessidade e não aquele
que vive a vida inteira ao nosso lado, mas foge ao primeiro clarim da desgraça. Jesus era o mestre dos bons
conselhos e esse é um dos seus melhores.
É possível, porém, como a maioria dos personagens que aparecem nos textos evangélicos, que Simão Cirineu seja uma figura emblemática, arquetípica, posta na história para transmitir verdades arcanas, de forma simbólica e hermética, acessíveis apenas a quem não se aferrolhou aos grilhões da ortodoxia religiosa. Ou então ele simbolize informações que foram propositalmente passadas em forma de alegorias ou meras charadas, tão ao gosto dos esoteristas e dos arquitetos de arcanas conspirações.
Historicamente o apelido Cirineu aplicava-se aos naturais de Cirene, capital da província romana da Cirenaica, situada no norte da África, território da atual Líbia. Era uma região colonizada pelos gregos, conquistada pelos romanos depois das Guerras Púnicas, quando Roma derrotou Cartago, a grande potência que dominava aquela região até então.
Simão Cirineu pode ter sido um judeu nascido em Cirene, pois ali se
concentrava uma importante colônia judaica (Ver Flávio Josefo, As Guerras dos
Judeus Vol. II) que foi destruída pelos romanos nos conflitos que ocorreram
entre 66 e 70 da era cristã. Segundo ainda Marcos e Lucas, os únicos
evangelistas a se referirem a esse personagem, ele tinha dois filhos, Alexandre
e Rufo, que uma tradição posterior identificou como discípulos de Jesus.
Mas os evangelhos dizem que ele era um indivíduo que voltava do campo
naquela hora. Informação intrigante essa, porquanto era a manhã de uma
sexta-feira, aquela em que Jesus e seus dois companheiros de infortúnio estavam
sendo levados ao calvário, e o mais correto seria que Simão estivesse indo para
o campo e não voltando dele.
Então Simão de Cirene tomou a cruz de Jesus e a levou até o monte onde ele seria crucificado. E depois desapareceu da história. E ele nem era discípulo de Jesus. Talvez nem o conhecesse ou sequer tivesse ouvido falar dele.
Há algumas tradições curiosas envolvendo o nome de Simão Cirineu. Um dos
evangelhos gnósticos, constante da biblioteca de Nag Hammadi (O Evangelho de
Seth), diz que quem morreu na cruz foi Simão Cirineu e não Jesus. Esse
evangelho, datado do segundo século da era cristã, sugere que havia um complô
entre Pilatos e os seguidores de Jesus, e que no caminho para o Gólgota os
prisioneiros foram trocados. Num desses tratados apócrifos (O Segundo Tratado
do Grande Seth), um suposto Jesus diz coisas tão estranhas como “(...) Eu não
morri como eles planejaram (...). Eu não morri realmente, mas apenas
aparentemente, e assim eu os enganei (...). Por que minha morte, que eles
pensaram ter acontecido, (...) em seu
erro e cegueira, pregaram na cruz outro homem, para morrer. (...) Foi
outro, que bebeu fel e vinagre, não eu.
(...) Foi outro, Simão, que carregou a cruz em seus ombros. Foi sobre outro que
eles puseram a coroa de espinhos...E eu fiquei rindo da ignorância deles.”
Um texto tão antigo contendo uma mistificação como essa dá o que pensar.
No mínimo, ficamos sabendo que a imaginação conspiratória não é coisa de
autores atuais. E que o cristianismo, em seus primeiros tempos, tinha a feição
de uma sociedade secreta, com cada grupo
desenvolvendo suas próprias ideias e
rituais, também não é novidade para
ninguém.
As coisas ficam mais complicadas quando se sabe que povos inteiros acreditaram
nisso e que muita gente morreu por essas crenças. Pois a ideia de que foi Simão
de Cirene quem morreu na cruz e não Jesus, foi uma das crenças esposadas pelos
cátaros, povo que vivia no sul da França nos primeiros séculos do segundo
milênio da era cristã. E por essa e outras crenças, foi dizimado numa cruzada
patrocinada pelo Vaticano e a coroa francesa.
Há indicações que os Templários também acreditavam nisso. Essa crença,
aliás, ainda hoje é divulgada em certos círculos islamistas, para quem Issa
(Jesus), o grande profeta, não morreu na cruz, mas sim que foi substituído por
outro. Várias seitas gnósticas, aliás, acreditavam que Jesus foi arrebatado
para o céu, em vida, antes de o seu corpo ser pregado na cruz. Quem foi
crucificado foi outra pessoa. Há quem diga que foi Simão de Cirene, outros
dizem que foi Tomé, o Dídimo, que segundo algumas tradições, era irmão gêmeo de
Jesus.
Enfim, desde aquele fatídico dia, constroem-se narrativas conspiratórias para todos os gostos...
Simão de Cirene, na verdade, talvez seja um desses personagens
emblemáticos que aparecem numa história como símbolo de alguma ideia que se
quer passar subliminarmente aos leitores. Ele é o oposto de Simão Pedro. Simão
Pedro, que era discípulo, prometeu seguir Jesus até a morte. Mas no primeiro
sinal de perigo o negou três vezes. Simão de Cirene, um desconhecido, sem
qualquer vínculo com Jesus, pegou a sua cruz e a levou até o calvário. Isso
confirma as próprias palavras de Jesus: “não há profeta sem honra a não ser em
sua própria casa.” Quer dizer: os judeus, conterrâneos e parentes consanguíneos
de Jesus o negaram. Um estranho, que talvez nem judeu fosse, tomou suas dores e
o ajudou.
Geralmente é assim. Dificilmente um homem, caído em desgraça, encontra
suporte entre os seus. O auxílio, quando chega, sempre vem de fora. O
reconhecimento também. Decepciona-se quem o esperar de seus conterrâneos e
parentes.
Essa é uma lição que os séculos e todas as tradições têm confirmado. E
talvez seja essa a verdadeira mensagem do personagem Simão Cirineu. Um exemplo
de amor ao próximo e uma mostra do que deve ser a verdadeira fraternidade.
Ajudar o seu próximo seja ele quem for sem importar a relação que tem conosco.
Para a maçonaria, cuja pregação tem muita relação com esses conceitos
arquetípicos, o exemplo de Simão Cirineu nos aparece como um belo exemplo da
mais pura maçonaria.
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