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A vida e o legado do homem que abdicou o
trono em meio a crises políticas e deu lugar para seu filho de cinco anos
"Aqui está a minha abdicação; desejo que
sejam felizes! Retiro-me para a Europa e deixo um país que amei e que ainda
amo", escreveu Dom Pedro I, na madrugada do dia 7 de abril de 1831.
Atacado pela imprensa brasileira por seus laços com Portugal, estreitados desde
a morte de Dom João VI, em 1826, Dom Pedro I deu sua última cartada, abdicando
do trono em favor do filho, Pedro de Alcântara, de 5 anos de idade.
O ato marcou o fim do Primeiro Reinado e o
início do período regencial, quando o governo foi dirigido por representantes
de Pedro II.
Desde criança, todo brasileiro está
acostumado a ver Dom Pedro I, pelo menos, de duas maneiras. A primeira é aquela
dos livros didáticos, com sua pose sisuda, porte imperial e tão (pouco)
atraente como uma estátua mal conservada em praça pública.
A segunda versão, mais popular, é a do Dom
Pedro intempestivo, mulherengo, uma espécie de latin lover. Enfim, o português
temperamental que proclamou a independência em um acesso de fúria à margem do
rio Ipiranga, em meio a um forte desarranjo intestinal.
O que pouca gente sabe é que, entre essas
duas versões, há outra face de Dom Pedro bem menos conhecida no Brasil que só
agora começa a ser resgatada. “Ele se tornou um símbolo de liberdade na Europa
na década de 1830”, diz Isabel Vargues, professora de História da Universidade
de Coimbra, em Portugal.
“Em
meio a inúmeros monarcas conservadores que estavam de volta ao poder nesse
período, Pedro IV foi considerado um estadista moderno que inaugurou um período
liberal no país.” (Não estranhe: Pedro IV é como nosso Dom Pedro I passou a ser
chamado pelos portugueses após ser proclamado rei em sua terra natal.)
Pesquisas já revelaram um lado fascinante do
homem que conseguiu transformar a América Portuguesa em uma única nação,
destino bem diferente do da América Espanhola – que se fragmentou em várias
repúblicas.
Isso não significa, é claro, que
Dom Pedro esteja sendo conduzido ao posto de guia moral da história do
Brasil. De fato, ele teve várias amantes e é bastante confiável a possibilidade
de que ele tenha tido crises de diarreia em meio à proclamação da independência.
Mas o realce que uma parcela da população e de historiadores continua a dar a
esses aspectos picarescos parece apenas confirmar o prazer que sentem os
brasileiros em reduzir os feitos de nossos vultos históricos.
Afinal, é difícil imaginar que um americano ponha
em xeque a grandeza de John Kennedy devido às suas escapadas conjugais (como a
que teve com a atriz Marilyn Monroe). Tampouco seria fácil encontrar um francês
diminuindo a grandeza de Napoleão por causa de algum mal-estar intestinal em
meio a uma de suas batalhas – algo bem provável de ter acontecido.
“Não
se trata de negar defeitos do caráter de Dom Pedro I, mas de reconhecer que ele
foi um estadista avançado quando comparado aos seus pares da época”, diz Braz
Brancato, professor de História da Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul e estudioso da vida de Dom Pedro após sua volta para a Europa.
“Além disso, ele conseguiu governar em um dos períodos mais turbulentos para os
regimes monárquicos, que estavam caindo a todo momento.”
O pequeno príncipe
A vida de dom Pedro começa em um quarto no
Palácio de Queluz, residência da família real portuguesa, cujas paredes estavam
decoradas com cenas do clássico Dom Quixote de la Mancha. Foi ali que Pedro de
Alcântara Francisco Antônio João Carlos Xavier de Paula Miguel Rafael Joaquim
José Gonzaga Pascoal Cipriano Serafim de Bragança e Bourbon nasceu, em 12
de outubro de 1798.
Apesar do nome portentoso, aquela não era uma
boa hora para um príncipe de Portugal nascer. Na época, o país estava
encurralado entre duas potências. De um lado, a antiga aliada Inglaterra, dona
da mais temida marinha do mundo. Do outro, a França de Napoleão Bonaparte, que
havia acabado de invadir a Espanha e exigia que Portugal fechasse seus portos
para os ingleses. No aperto, dom João optou pela Inglaterra, a aliada
tradicional. O resto você já sabe: a corte portuguesa foi transferida para o
outro lado do Atlântico em 1808 e o Brasil jamais seria o mesmo.
A família se adaptou logo à vida por aqui,
incluindo o pequeno Pedro. Cercado de tutores encarregados de prepará-lo para
ser o sábio sucessor do pai, o pequeno príncipe acabou tendo uma infância tão
movimentada quanto a de qualquer moleque carioca da época. Irreverente,
divertia-se dando pancadas no queixo dos meninos que vinham beijar-lhe a mão.
Fascinado por armas, caçava à vontade.
Adorava andar a cavalo, tocava vários
instrumentos musicais e gostava do trabalho manual. Orgulhava-se de seu talento
como marceneiro e ferreiro, atividades, à época, consideradas “próprias para
escravos”. Mas ele não ligava: costumava conversar horas com criados.
Esse convívio popular atraía comentários não
muito elogiosos. Nobres francesas reconheciam que ele era um rapagão bonito –
de acordo com as más línguas, a única pessoa bonita de toda a casa real de
Bragança –, mas abominavam suas roupas e seus modos. Mesmo assim, ao completar
18 anos, o príncipe era considerado um dos maiores conquistadores do
Rio de Janeiro.
Era hora, então, de arrumarem uma nobre noiva
para dom Pedro. E bota nobre nisso: a jovem arquiduquesa (ou apenas “princesa”)
Leopoldina Carolina era filha do imperador Francisco I, último líder do milenar
Sacro Império Romano-Germânico (dissolvido até sua derrota para Napoleão, em
1804 - quando se tornou "mero" imperador da Áustria).
Os dois não podiam ser mais diferentes:
enquanto dom Pedro preferia andar com amigos de origem simples, Leopoldina era
muito refinada, tinha sólida formação científica (era craque em mineralogia) e
havia sido amiga do poeta alemão Johann W. Goethe e do compositor austríaco
Franz Schubert.
Como a irmã de Leopoldina tornara-se esposa
de Napoleão, dom Pedro se tornou concunhado do homem que obrigou sua família a
fugir de Portugal. Apesar das diferenças, Leopoldina ficou de queixo caído no
primeiro encontro com o noivo. Eis o que ela escreveu numa carta sobre a
primeira refeição a dois entre eles: “Conduziu-me ao salão de jantar, puxou a
cadeira e, enquanto comíamos, piscou-me o olho e enlaçou a perna dele na minha
debaixo da mesa”.
Crise em Portugal
Apesar do casamento, a paz da família real no
Rio estava com os dias contados. Desde 1815, com a derrocada de Napoleão, a
desculpa que a corte tinha usado para se mudar para o Brasil não se sustentava
mais. Dom João (agora João VI, graças à morte de sua mãe, Maria I) não só se
recusava a voltar como havia transformado a ex-colônia em reino unido a
Portugal, sacramentando o Brasil como sede do império português. A capital
carioca havia deixado de ser uma vila acanhada de uns 40 mil habitantes para
virar uma metrópole de mais de 100 mil.
Quem não estava achando essa história nada
engraçada eram os portugueses. Eles haviam perdido o domínio político sobre o
Brasil, viviam uma crise econômica (gerada, em parte, pelo fim do monopólio
comercial sobre a colônia) e estavam submetidos a uma humilhante ocupação
militar inglesa.
Adicione a esse caldo uma pitada das ideias
da Revolução Francesa, que ainda repercutiam em toda a Europa, e o resultado
foi a chamada Revolução Constitucionalista do Porto, em 1820. Os
revolucionários convocaram eleições e exigiram uma Constituição para Portugal,
limitando os poderes absolutos do rei. Para isso, determinavam que o soberano
voltasse.
Dom João VI não sabia se ia, se ficava ou se
mandava dom Pedro. Tudo indica que ele temia o interesse do filho pelas ideias
liberais e que, uma vez em Lisboa, ele fosse aclamado rei pelos
revolucionários. O herdeiro, por sua vez, ressentia-se da desconfiança do pai.
Em meio à crise, dom Pedro acabou se tornando porta-voz das reivindicações
constitucionais junto ao pai, convencendo-o a jurar lealdade à Constituição.
Quando dom João VI decidiu retornar, em março
de 1821, dom Pedro tornou-se príncipe regente do Brasil. Pouco antes da partida
do pai, ele tomou sua primeira medida antipopular: mandou reprimir com
baionetas tumultos causados por protestos contra medidas impostas por Portugal.
Pelo menos três pessoas morreram no episódio.
Independência
Em Portugal, dom João VI tornou-se uma figura
decorativa. Quem governava, de fato, era a Assembleia – e suas medidas atingiam
em cheio o orgulho brasileiro. “O projeto dos portugueses mais exaltados
parecia ser a redução do Brasil ao estado colonial, numa situação política e
econômica mais desvantajosa que a de antes da vinda do rei”, diz Isabel
Lustosa, autora da biografia Dom Pedro I.
A partir de então, Portugal decidiu que cada
província do Brasil teria um governo autônomo que responderia diretamente a
Lisboa, enfraquecendo o poder do príncipe regente. Para piorar, Lisboa enviou
tropas ao Brasil que deviam submissão direta ao governo português.
Dom Pedro estava dividido. De um lado, era
inclinado a manter-se fiel a Portugal. Do outro, era atraído pelos panfletos e
boatos que anunciavam que seria aclamado rei ou imperador do Brasil, caso
rompesse com Lisboa. Um decreto luso exigindo que o príncipe voltasse à Europa,
onde deveria viajar por vários países para “terminar sua educação”, fez com que
ele enfrentasse diretamente as ordens da corte e decidisse permanecer no
Brasil. Foi o Dia do Fico, em 9 de janeiro de 1822. Estava aberto o caminho
para a independência.
Na tarde do dia 7 de setembro, ao voltar de
uma viagem à capital paulista para apaziguar disputas políticas, a comitiva de
dom Pedro foi alcançada na colina do Ipiranga pelo serviço de correio da corte.
As notícias não eram nada boas: a Assembleia portuguesa exigia a demissão de
todos os ministros nomeados por dom Pedro e ameaçava fazer uma devassa em todos
os atos do príncipe.
Segundo um dos membros da comitiva, o padre
Belchior (o mesmo que narrou que dom Pedro estava sofrendo uma disenteria “que
o obrigava o tempo todo a apear-se para prover”), dom Pedro pisoteou as cartas
vindas de Portugal, arrancou do chapéu o laço com as cores lusitanas e teria
dito as famosas palavras: “Laços fora, soldados. Viva a independência, a
liberdade e a separação do Brasil”, declarando que o lema do país seria
Independência ou Morte.
Em 12 de outubro, dom Pedro I é aclamado
imperador e defensor perpétuo do Brasil. Mas, diferentemente do que muita gente
imagina, a independência do país não foi feita apenas com o grito no Ipiranga.
Ao cortar os laços com Portugal, o Brasil, na prática, declarou guerra à
ex-metrópole. Sangue foi derramado em diversas regiões – em algumas províncias,
como na Bahia, a independência só seria conquistada quase um ano depois.
Constituinte
Após a independência, prevalecia o consenso
de que o Brasil precisava de uma Constituição própria. Apesar de defender
princípios liberais, dom Pedro temia que o poder da Assembleia Constituinte
eleita em 1823 ameaçasse seu governo, o que poderia também levar à fragmentação
do Império. Após se sentir desafiado pelos parlamentares oposicionistas, ele
dissolveu a Assembleia em novembro e, em março de 1824, outorgou uma
Constituição elaborada por um conselho de dez membros que ele mesmo indicara.
“Por
muito tempo, essa medida autoritária terminou ofuscando o reconhecimento do
avanço do texto constitucional imposto por dom Pedro”, diz a historiadora Lucia
Bastos Neves, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. A nova Constituição
incluía direitos pouco comuns para a época, como a liberdade de crença e culto
concedida a adeptos de religiões não-cristãs.
Por outro lado, garantia ao imperador poderes
excepcionais. Além de ser o chefe do Executivo, ele detinha também o chamado
Poder Moderador, com o qual podia resolver impasses entre os demais poderes com
mão de ferro e dissolver o Congresso quando quisesse.
A decisão causou revolta. Lideradas por
Pernambuco, várias províncias do Nordeste se rebelaram contra o que
consideraram um ato de tirania, formando a chamada Confederação do Equador. A
repressão foi implacável e vários chefes rebeldes, entre eles Frei Caneca,
foram executados. A revolta foi seguida por outra, no extremo sul do Império: a
província da Cisplatina (atual Uruguai), anexada por dom João VI, rebelou-se
com ajuda da Argentina. A guerra acabou em 1828, com o reconhecimento do
Uruguai como país independente.
Outros desastres, dessa vez na vida
doméstica, foram minando a popularidade do soberano. O principal deles foi o
triste fim de seu casamento com dona Leopoldina. Dom Pedro chegou muito perto
de assumir em público seu romance com Domitila de Castro, a marquesa de Santos,
com quem teve vários filhos reconhecidos. O pior, porém, é que transformou a
amante em dama de honra da imperatriz. Dona Leopoldina sofreu uma série de
crises depressivas. Acabou morrendo em dezembro de 1826.
Com a morte de dom João VI no mesmo ano, o
imperador se viu envolvido na sucessão do trono português. Acabou designando
sua filha adolescente, dona Maria da Glória, como rainha de Portugal,
combinando o casamento dela com o tio, dom Miguel, nomeado regente. Tiro pela
culatra: Miguel assumiu o poder como rei absoluto de Portugal e mandou o irmão
às favas.
Por aqui, as hostilidades entre brasileiros e
portugueses fizeram com que dom Pedro percebesse que os nativos sempre o veriam
com desconfiança por seus laços congênitos com Portugal. A imprensa atacava dom
Pedro violentamente, o povo protestava nas ruas. Como seu filho, Pedro, havia
nascido no Brasil, o imperador deu sua última cartada para que o Brasil não se
esfacelasse, abdicando do trono em nome de uma criança de 5 anos de idade (que,
coroado em 1841, seria o último imperador do Brasil).
Pedro IV
Para nós, brasileiros, a história de dom
Pedro costuma terminar por aqui, com seu retorno à Europa. Mas foi ao partir
para o exílio, em 1831, então já casado com dona Amélia, uma princesa alemã,
que ele viveu uma espécie de renascimento e se tornou um ícone da liberdade na
Europa. Havia vários motivos para que dom Pedro fosse encarado dessa maneira.
O primeiro deles era sua defesa da volta de
um governo constitucional às terras lusas, governada então despoticamente por
seu irmão Miguel. “Naquela época, não era comum que um monarca se empenhasse em
garantir direitos constitucionais”, diz Braz Brancato. Segundo o historiador,
isso fazia com que ele fosse visto com desconfiança por seus pares da Santa
Aliança, grupo de monarquias conservadoras cristãs que incluía Rússia, Áustria
e Prússia (hoje na Alemanha).
Ao se instalar em Paris com parte da família,
dom Pedro tornou-se uma das personalidades mais populares da capital francesa,
sendo recebido com deferência nos elegantes bailes da corte. A França vivia uma
onda liberal marcada pela ascensão do rei constitucional Luís Filipe e dom
Pedro chegou a morar em um castelo real, onde recebia exilados de Portugal e de
outros países que sofriam sob a mão de monarcas despóticos.
Nesse período, ele buscou apoio militar para
invadir Portugal e destituir seu irmão, fazendo de sua filha a rainha de
Portugal. Apesar do apoio verbal, nenhum dos reinos europeus quis se envolver
oficialmente com a briga. Foi só com empréstimos pessoais (para pagar
mercenários) e certo número de voluntários portugueses e franceses que dom
Pedro partiu para sua derradeira aventura. Liderando um exército de 7 mil
homens, ele foi para Portugal, onde teria que enfrentar dezenas de milhares de
soldados comandados por dom Miguel.
O fim
de um guerreiro
Incansável e se arriscando pessoalmente nas
batalhas, ele inspirou seus soldados de tal maneira que o que parecia
impossível aconteceu: em 20 de setembro de 1834, Portugal passava às mãos da
nova rainha, dona Maria II. “Ela e seu filho, Pedro V, iriam inaugurar a fase
moderna e constitucional da monarquia portuguesa”, diz Isabel Vargues.
O ex-imperador do Brasil não viveu muito para
acompanhar o governo da filha. A guerra acabara também com sua saúde, e ele
morreu provavelmente de tuberculose no dia 24 de setembro de 1834. No mesmo
quarto decorado pelas cenas de dom Quixote onde ele nascera, 36 anos antes,
quando o Brasil não passava de uma colônia portuguesa do outro lado do
Atlântico.
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