A ESPIRITUALIDADE DO RITO ESCOCÊS ANTIGO E ACEITO

Por Max Icher - Tradução de Moiz Halfon, 33º

Alocução pronunciada por ocasião da festa da ordem pelo mui ilustre irmão Max Icher, 33°, Ministro de Estado, Grande Orador do Supremo Conselho de França, domingo, 14 de Dezembro de 2003, em Paris sábado 28 de Fevereiro de 2004, em Avignon sábado 24 de Abril de 2004, em Pont-à-mousson sábado 25 de Setembro de 2004, em Lyon e pelo mui ilustre irmão Jean Erceau, 33°, membro activo sábado 3 de Abril de 2004, em Fort de France

Esta festa da ordem escocesa, sessão maçónica solene no grau de aprendiz que une na prática do Rito Escocês Antigo e Aceito todos os Irmãos do 1° ao 33° grau, é particularmente comovente pois ele marca o ano de júbilo do Supremo Conselho de França que irá comemorar em 2004 o segundo centenário da sua criação.

Este evento deverá permitir-nos tomar consciência das nossas origens e estreitar os laços de fraternidade iniciática que unem naturalmente a Obediência e a Jurisdição na prática do Rito Escocês Antigo e Aceite. Juntos, evocaremos a especificidade deste Rito, os seus valores, as suas permanências tradicionais, a sua dimensão espiritual, os caminhos que se propõem à “busca”, as suas perspectivas e a modernidade da sua Tradição.

Génese e histórico da espiritualidade do Rito Escocês Antigo e Aceito
A nossa Ordem tomou corpo, sob a sua forma especulativa no início do século XVIII, quando o pensamento religioso, experimentando os seus próprios constrangimentos ideológicos, o seu sectarismo redutor, as suas intransigências dogmáticas, tornou-se incapaz de se transcender e de oferecer uma nova visão do mundo, o que fez a filosofia dos Iluminados. Pela sua tolerância, foi uma resposta ao bloqueio e aos conflitos religiosos, políticos, filosóficos e socioculturais do seu tempo. Apoiando-se em símbolos, mitos e lendas que evitam o reducionismo e aceitam a expressão de pontos de vista diferentes, visões opostas ou contraditórias, o método maçónico, evitando assim a rigidez intelectual, ultrapassa os dogmatismos ideológicos do seu tempo, permite uma abertura espiritual suprimido do religioso, ao oferecer um modelo de convivência fraternal.

O Rito Escocês Antigo e Aceito nasceu na França numa época onde a espiritualidade era quase que exclusivamente de natureza religiosa (essencialmente católica e protestante). Surpreenderá muito pouco saber que as suas lendas temáticas e os seus suportes simbólicos foram extraídos da Bíblia. Para um Maçom do século XVIII não existe nenhuma dúvida que o Grande Arquiteto do Universo era o Deus das Religiões do Livro; bastava para se convencer dirigir-se aos rituais da época e às preces pronunciadas em Loja !


A criação dos Altos Graus introduziu nos rituais da Segunda metade do século XVIII novas fontes de espiritualidades: hermética, gnóstica, mística, cabalista, rosacruciano, templário, sem que no entanto seja contestada a existência de um Grande Arquiteto do Universo.

No decorrer do século XIX, uma separação muito nítida se estabelece entre os domínios do saber e da fé: uma intervenção divina não se tornava mais necessária para explicar a origem do mundo e das criaturas, nem para computar uma finalidade. O pensamento torna-se leigo progressivamente, o sagrado, a dimensão espiritual do homem, os absolutos morais perdem a sua prioridade e o seu impacto sobre uma parte de maior importância da população culta. Doravante sozinho num mundo sem causa e sem alma, face a si próprio, o homem empenha-se pouco a pouco para o materialismo, vislumbra o ateísmo, o que provoca, por reação, a radicalização das Igrejas e dos conservadorismos filosóficos e políticos.

Assim, as Religiões do Livro encontram-se postas em competição com uma visão mais filosófica e mais impessoal do Ser de todas as coisas; esta corrente que professava uma espiritualidade ampla, libertada dos conceitos da Criação do nada e da Revelação intitula-se “Religião Natural”. (Lembremos a polémicas doutrinárias que se erguem entre as teses do Irmão Jules Simon, autor do livro: A Religião Natural e aquelas de Mgr Méric na sua obra: A outra vida).

Os debates filosófico-religiosos que agitaram a metade do século XIX alcançaram a esfera maçónica e suscitaram nas lojas a “Querela do Grande Arquiteto do Universo”. O Grande Oriente da Bélgica primeiro, em 1872, e o Grande Oriente da França a seguir, em 1877, e responderam suprimindo a obrigação de dedicar os seus trabalhos à Glória do Grande Arquiteto do Universo. O Supremo Conselho da França, portador depois de 1804 do destino do Rito Escocês Antigo e Aceito na França, não escapou a estas turbulências mas os seus Membros, permanecendo ligados ao princípio de uma substância espiritual primordial e aos valores morais, fins próprios da atividade humana, escolheram uma outra solução ao provocar a reunião de uma Convenção Universal para debater e encontrar uma origem. Foi assim que em 1875, a Convenção de Lausanne decide não mais assimilar o “Grande Arquiteto de Universo” a “Deus” das religiões, mas propor formulações com pretensões universalistas:

·      Criador Supremo
·      Princípio Criador
·      Força Superior

Posicionando-se num plano espiritual aberto e tolerante, a Convenção de Lausanne não tendo presumido as reações anglo-saxónicas que se ergueram quanto antes, gerou infelizmente novas polémicas no seio da Ordem Escocesa, as quais perduram ainda nos nossos dias.

Depois do fracasso das ideologias filosóficas, políticas ou religiosas que afetaram todo o século XX e, por reação à civilização materialista e consumista que eles tinham engendrado, nasce paralelamente uma necessidade crescente de espiritualidade (o surgir do movimento New Age, o desenvolvimento de múltiplas correntes psico-espirituais, atraídos pelo hinduísmo, o budismo ou o taoismo ao mesmo tempo que uma multiplicação de seitas). Uma espiritualidade separada de uma Tradição confirmada corre o risco de se perder numa busca duvidosa ou numa espécie de turismo espiritual superficial.

O Supremo Conselho da França, por sua parte, regista-se sempre na perspectiva espiritualista e universalista de Lausanne. Ao não identificar o “Grande Arquiteto do Universo” ao “Deus” das religiões, coloca-se num plano espiritual aberto e tolerante, não estando o Espírito limitado ao único contexto das Religiões do Livro. Esta concepção não se encontra, portanto em oposição com a escolha mais restritiva dos Supremos Conselhos teístas posto que eles a incluem. A interpretação “ não religiosa ” do “Grande Arquiteto do Universo “, considerada pelo Supremo Conselho da França como um princípio impossível a ser definido como a ser negado, traz muitas vãs especulações ao seu propósito.

Cada um dos membros da sua Jurisdição conserva uma total liberdade de consciência em relação à sua concepção pessoal do “Grande Arquiteto do Universo”, pedra fundamental do Rito.

Para poder beneficiar as potencialidades iniciáticas e espirituais do Rito Escocês Antigo e Aceite, convém descobrir os Caminhos, no sentido etimológico do verbo, e acolher as virtudes.

Por que somos Maçons ? Qual é o objetivo da nossa busca? Por que escolhemos a prática do Rito Escocês Antigo e Aceite, Ordem Iniciática Tradicional por excelência, para compreender o mundo e construir o nosso ideal de Liberdade e de Verdade ?

Desde que um homem se questiona sobre a sua origem, a sua natureza profunda e a sua razão de ser, desde que o mistério da criação e a finalidade do destino humano o interpelem, ele põe-se a buscar um Absoluto, um sentido à Vida e à sua própria existência, a imaginar um ideal de sabedoria e de santidade na direção da qual tende. Assim envolve-se num processo de espiritualização que o leva a se recentrar sobre si mesmo, distinguindo o profano do sacro, a empreender uma conversão existencial. Se perseverar, pode ser que chegue um dia a apoiar definitivamente a sua existência sobre uma base ética e espiritual firme e a se dedicar generosamente aos seus irmãos na humanidade.

Ao passar progressivamente de uma consciência dualista, (que apela para uma análise reflexiva, discursiva e conceitualizante de si mesmo e do mundo), a uma consciência unicista, (meditativa, não verbal, não conceitualizante que se contenta em contemplar o que é, e de se inclinar diante daquilo que lhe é revelado em silêncio), o Homem, ultrapassando as suas identificações físicas, psicológicas e ideológicas, abre-se para uma Realidade imaterial a qual se torna presente intimamente nele e ao redor dele, o qual pressente o carácter sagrado e a unicidade última.

Ele reconhece então, por experiência pessoal, que a essência daquilo que se revela a ele não é coisa nenhuma mas vida e que esta vida, na sua modalidade não manifesta, é puro espírito.

A afirmação de Luc (XIV, 6) para designar o Ser universal: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida” fornece uma indicação suficientemente ampla para que os “buscadores” em geral, e o Maçom Escocês em particular, possam, além da sua cultura, filosofia ou religião pessoal, ver, cada um de acordo com a sua própria crença, a possibilidade de uma abertura espiritual dentro do respeito da sua liberdade de consciência.

O caminho iniciático do Rito Escocês Antigo e Aceito

O caminho iniciático do Rito Escocês Antigo e Aceito propõe-se, a princípio, ajudar o Maçom a refinar o seu discernimento. Ao incitá-lo a um retorno sobre si mesmo, o convida a tomar consciência de determinismos instintivos, emocionais, mentais, ancestrais, sociais e ideológicos que suscitam os seus pensamentos, induzindo as suas fixações de identidade e motivando inconscientemente os seus atos.

Se esta primeira fase do despertar à sua realidade interna é bem conduzida e levada o mais longe possível, ele poderá a seguir descobrir, além dos seus estados psicológicos e das suas pressupostas intelectualidades, uma dimensão ultrapassando o plano limitado da sua pessoa: a natureza espiritual do seu ser profundo.

Apesar da sua dupla polaridade, humana e divina (Terra e Céu, Matéria e Espírito, Esquadro e Compasso), o Maçom Escocês envolvido no caminho iniciático do Rito, aprende que este despertar dele próprio, depois a sua abertura para além da sua pessoa, não podem efetuar-se por uma simples adesão a um ensino doutrinal.

Ele dá-se conta que a descoberta progressiva da sua natureza fundamental e o seu esforço de espiritualização não poderão realizar-se sem serem sustenidos por uma firme vontade pessoal, nem serem prosseguidos sem serem acompanhados de uma disposição tradicional para evitar perdas. Não lhe será mais solicitado a abdicar da sua personalidade, nem render culto a uma entidade divina, mas dissipar os véus da ignorância os quais obscurecem a sua consciência, perturbam a sua reflexão, adulterando as suas escolhas e os seus compromissos existenciais. Esta consciência que ordenará a sua vida e, agente da sua própria regeneração, aberta sobre uma última realidade que o penetra e o ultrapassa, dará sentido à existência, por si e pelos outros, ao mundo e à sociedade atual em danos e reparos. Ainda mais, unido em consciência ao Princípio universal e espiritual que a Maçonaria Tradicional denomina “Grande Arquiteto do Universo”, tendo adquirido o sentimento de estar reunificado em si próprio e reconciliado com o mundo, ser-lhe-á possível consagrar-se à sua vocação de construtor, com zelo, justeza e fraternidade.

Todas as grandes Tradições filosóficas e religiosas, do Ocidente como do Oriente, reconhecem a inaptidão do homem, ser pessoal, dual e finito, em entender o Ser do Universo em pleno conhecimento, em compreendê-lo ( tomar em si ), em defini-lo integralmente, em sondar as suas intenções eventuais ou a sua finalidade. O “pessoal” não pode abranger o “impessoal”, nem o finito o infinito, nem o temporal o eterno, não resta ao homem sábio senão abrir-se e se inclinar reverenciosamente diante o Mistério de “aquele que é”. Evitando sempre vãs tentativas de definição ou de interpretação, contenta-se em reconhecer que, além e deste lado do que se oferece à sua constatação, à conquista da sua consciência, existe uma realidade imaterial, informal, de essência espiritual, às vezes imanente e transcendente o seu conhecimento pessoal que se tenta evocar de forma diversa sob as denominações de Deus, Criador, Essência Divina, Causa Primeira, Eterno, Ser Supremo, Consciência Ilimitada, Energia, Poder Universal, Natureza original, Verdade Final, Amor, Perfeição, Luz ou Grande Arquiteto do Universo – vocábulos não faltam, sem conseguir no entanto dar conta perfeitamente.

O caminho espiritual do Rito Escocês Antigo e Aceito
A espiritualização pelo caminho iniciático requer, daquele que o escolhe, uma participação voluntária, lúcida e ativa ao seu despertar interior, numa total liberdade de consciência.

Ela é uma busca, uma meditação e uma aventura pessoal conduzidos num plano tradicional que indica uma orientação de pesquisa mas não exatamente a origem desta pesquisa. Aqui, a prática ritualística não é cultural ou sacramental mas ajuda a distinguir o mundo profano do mundo sagrado e a facilitar a passagem de um ao outro; o seu simbolismo só pode ser visto numa iniciação e como um suporte de uma reflexão meditativa. Ela não reclama nenhuma crença preliminar, mas somente uma disposição que possa responder a um apelo interior e uma tenacidade a querer acompanhar tão longe e por quanto tempo for necessário para lhe permitir desabrochar. Ela não repousa sobre nenhuma afirmação teórica ou formulação dogmática concernente às Verdades as quais convém subscrever, mas implica a prática efetiva de um percurso, prova iniciática em direção a uma “realidade” cuja presença irá revelar-se ao coração, ao centro da pessoa.

A espiritualidade proposta pelo Rito Escocês Antigo e Aceito necessita de uma disposição particular da alma, componente espiritual da pessoa, que anima a sua existência e lhe confere um impulso ético, inspira-lhe uma abertura incondicional do coração ( a ele mesmo, a outro e a toda forma de vida), permite-lhe ultrapassar os temores e as dúvidas que freiam os seus ímpetos na direção do desconhecido, dá-lhe força e perseverança no caminho árduo da sua descoberta e da sua transformação.

Independente de uma revelação divina, de uma doutrina filosófica ou religiosa, de uma devoção a uma entidade divina, um profeta ou um guru, o caminho espiritual do Rito Escocês Antigo e Aceito é verdadeiramente universalista porque ele não impõe nenhum pré-requisito ideológico. Dirigido para o existencial, repousa sobre uma Fé no Homem, no sentido de uma confiança na sua perfectibilidade, na sua capacidade e discernimento e na sua faculdade de despertar todas as suas potencialidades: sensitiva, psicológica, intelectual, cognitiva, intuitiva e espiritual. Esta confiança na natureza humana incita o Maçom do Rito Escocês Antigo e Aceito a empreender deliberadamente uma busca de Conhecimento e de Verdade, o consolo no seu desejo de chegar cada vez mais perto da Realidade que se manifesta nele e ao redor dele. Nascido da experiência do que se revela interiormente no momento da progressão iniciática, desta vez procede de uma descoberta pessoal corroborada pela razão e concretizada na compaixão e na ação ética em favor da humanidade.

Desta forma, o percurso iniciático em trinta e três graus proposto pelo Rito Escocês Antigo e Aceito constitui um caminho simbólico de espiritualização. Ele reclama do adepto uma disciplina pessoal de eliminação progressiva dos “metais” psicológicos, intelectuais e ideológicos que encobrem o seu mental e o impedem de ser consciente da sua dimensão espiritual, sendo o essencial deste percurso o meio de se adiar sobre o seu aspecto exotérico, por outro lugar necessário para balizar a rota, que resgata os ensinamentos esotéricos que iluminam o caminho interior, ao sinalizar os obstáculos e sugerindo uma direção de busca. Gradualmente, o adepto aprenderá a descobrir o essencial por detrás do formal, a dirigir os seus passos e os seus actos em função deste essencial, a melhor discernir nele o apelo do Espírito que se tornará cada vez mais preciso e mais premente. Desde então, poderá viver a sua Luz de Espírito e assumir plenamente a sua existência com Sabedoria, Força e Beleza.


Tal é a via iniciática e espiritual do Rito Escocês Antigo e Aceito que nós escolhemos livremente descobrir e percorrer depois da nossa entrada no Templo Maçónico, depois do primeiro grau do Rito.

No decorrer do século XX, a maioria das ideologias filosóficas, religiosas, políticas e económicas mostraram a sua inadequação, os seus limites ou as suas falhas. Uma renovação do pensamento espiritual e da ética se torna necessário para endireitar a situação na qual a humanidade está comprometida. Face a uma mundialização essencialmente materialista que desestabiliza ou destrói os indivíduos, empobrece ou arruína certos países, perverte ou exacerba as relações internacionais, o Rito Escocês Antigo e Aceito praticado nas Lojas da Grande Loja de França e do Supremo Conselho de França, tolerante, espiritualista e humanista, universalista e unificante, este Rito pode-nos oferecer a nós, contemporâneos em busca de sentidos e de perspectivas existenciais, um caminho de realização pessoal e coletivo.

De todas as partes a Humanidade chama com as suas promessas por um renascimento espiritual, por uma espiritualidade aberta para o século XXI. O nosso Rito Escocês Antigo e Aceite, pelos valores que encerra, inscreve-se numa tal perspectiva.

Meus Mui queridos Irmãos Aprendizes é a vós que dedico com prioridade estas reflexões sobre a Espiritualidade do Rito.


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