Por João Anatalino
“ De Isaque sairá a descendência que há de
ter o teu nome. Mas também do filho da escrava farei um grande povo por ser do
teu sangue.” Gênesis, 21:13.
De Abraão, um homem velho e sem potência,
E Sara, mulher estéril, pois tinha muita
idade,
O Senhor, que é gestor de toda possibilidade,
Fez nascer Isaque, por sua divina
providência.
A esse Isaque Deus deu grande saber e glória,
E a Ismael, o meio-irmão, nascido da egípcia,
O Senhor dotou com muita coragem e perícia;
Juntos eles fundaram nações de bela história.
Isaque deu origem ao heroico povo de Israel,
Que logo se tornaria a nação da
competência;
Os árabes valentes são as sementes de Ismael.
Quem lê entenda, pois aqui existe sabedoria:
Um é o cérebro da terra
– dele vem a ciência.
O outro é o coração–tem a fé como seu guia.
Abraão, o fundador de nações
Diz o texto bíblico: “Ora, o Senhor disse
a Abrão: Sai da tua terra, e da tua parentela, e da casa de teu pai, e vai para
a terra que eu te mostrarei. E far-te-ei uma grande nação, e abençoar-te-ei, e
engrandecerei o teu nome, e tu serás uma bênção.”(Gênesis 12:1-2).
Depois, á vista das vicissitudes enfrentadas
por Abrão na terra da promessa, Deus resolveu dar a ele para sempre toda a
terra que ele pudesse medir com os olhos, bem como multiplicar a sua
descendência como o “pó da terra”. Eis aí, nessa promessa feita ao agora
Abraão, o cerne da reivindicação israelita sobre as terras palestinas, e o
principal móvel da disputa milenar que ainda se trava naquela região.
Israel, segundo as crônicas bíblicas, teria
um “direito divino” sobre essas terras, o que tornaria a sua luta uma
verdadeira “guerra santa”, idéia essa que também é combatida pelos seus
inimigos palestinos, para quem “eliminar para sempre Israel do concerto das
nações”, é a vontade inalienável de Alá.
Assim, a saga de Abraão, como exposta na
Bíblia, revela bem o intuito ideológico que os cronistas bíblicos quiseram lhe
dar.
Na consistência temática e na continuidade
histórica que o povo de Israel lhe deu, estão as raízes desse direito. E essa é
a grande força desse livro, que até hoje continua sendo o maior monumento
literário já produzido pela humanidade e o que mais influiu no pensamento
humano até os dias de
hoje.
Historiadores como Israel Finkelstein e Neil
Archer Silbermam (A Bíblia Não Tinha Razão, Ed. Girafa, 2003), no entanto, argumentam
que a religião monoteísta de Israel não nasceu antes da separação que o
unificado reino de Israel sofreu após a morte de Salomão.
Na verdade, o monoteísmo dos israelitas só
teria se consolidado século VII, no reinado do rei Josias, e seria durante sua
gestão como rei de Judá que os cronistas da sua corte teriam terminado a
compilação das histórias bíblicas, criando uma literatura épica e ideológica,
com claras intenções de forjar para Israel uma origem nobre e um direito
hereditário sobre as terras que haviam conquistado pela espada de Josué,
primeiro, e depois por Saul e Davi.
Segundo esses historiadores, os cronistas da
corte do rei Josias “criaram” uma história para Israel com claros propósitos
ideológicos e políticos. O único problema é que, ao fazer de Abraão o "pai
de multidões", eles abriram também a possibilidade de que os demais povos,
descendentes desse patriarca, viessem reivindicar parte da sua
herança. Destarte, praticamente todos os povos do Oriente Médio poderiam,
hoje, se dizer descendentes de Abraão. E as religiões que se originaram do
Javismo confirmam esse fato, pois todas têm sua origem no monoteísmo
hebraico.[1]
Árabes e Judeus
Ao contrário do que se pensa não há uma
animosidade histórica entre árabes e judeus, embora a ideologia expressa nas
crenças religiosas dos dois povos tenha concorrido para criar um ambiente de
hostilidade entre eles. Na verdade , o conflito histórico existente na
Palestina é entre os povos cananeus, hoje representado pelos palestinos, e
Israel. A confusão, nesse caso, se estabelece pelo fato de os palestinos de
hoje falarem a língua árabe e professarem a religião muçulmana, o que os
aproxima dos povos árabes.
Na verdade, ao longo da história, judeus e
árabes conviveram com mais facilidade do que judeus e cristãos e cristãos e
muçulmanos. Essa realidade foi mais visível na época das cruzadas, por exemplo,
quando os cristãos ganharam a inimizade tanto de árabes quanto de judeus, pois
eles apareciam como invasores numa terra estranha, massacrando indistintamente
tanto uns quanto outros. Hoje essa realidade mudou face á ocidentalização dos
judeus, e ao fato de que a maioria do seu apoio financeiro, político e
ideológico vir do ocidente, mas até a metade do século passado, a convivência
entre árabes e judeus era até bem pacífica.
A questão ideológica
Na verdade, tantos judeus quanto árabes
procuram dar á história de Abraão e seus dois filhos claros contornos
ideológicos. No direito consuetudinário das tribos orientais é sempre do filho
primogênito o direito de sucessão. Abraão não tinha um filho de sua esposa
Sarai, por isso usou o expediente comum de tomar uma serva para gerar esse
filho. Para os judeus, aceitar que seu povo tivesse origem no filho de uma
escrava não era uma coisa que os honrasse muito. Daí o estratagema imaginado
pelos cronistas bíblicos, de fazer Sarai, de forma milagrosa, ter um filho para
que Israel não tivesse que amargar uma descendência espúria por parte de
mãe.
Então Deus fez nascer Isaque, por divina
providência. E isso subverteu a tradição legal, pois esse “truque” divino, que
se assemelha á uma chicana jurídica, tirou dos árabes o seu legítimo direito á
herança de Abraão.
Assim, a animosidade entre árabes e judeus
teria começado já naqueles tempos, face ao conflito instaurado nas tendas do
patriarca Abraão entre suas duas mulheres e seus respectivos filhos, cada um,
por seu lado, reivindicando a herança do velho patriarca.
Sarai, a esposa legal de Abraão venceu a
disputa e a concubina de Abraão, Agar, junto com seu filho Ismael, foram
expulsos do acampamento hebreu. Para que o episódio não fosse contabilizado
como uma grosseira injustiça, os cronistas bíblicos compensaram o deserdado
Ismael com a geração dos povos do deserto (como os antigos israelitas chamavam
os árabes) [2] Assim, embora árabes e israelitas fossem primos irmãos,
esse episódio teria criado um profundo poço de descontentamento e animosidade
entre os dois povos.
Essa animosidade se tornou ainda mais
profunda quando os árabes adotaram a religião de Maomé, o Islã. Embora
sustentando que o Islã é uma continuação do Javismo e que o Alcorão é um
complemento da Toráh, e Maomé uma espécie de reencarnação de Moisés, o livro
sagrado dos muçulmanos é um tanto ambíguo quanto á relação entre árabes e
judeus.[3]Ao mesmo tempo que instrui os muçulmanos a tratar os judeus como
irmãos, também ordena que os judeus que não se converterem ao Islã sejam
tratados como inimigos.
A hostilidade entre judeus e árabes,
entretanto, só se tornou violenta depois da Segunda Guerra Mundial, quando as
Nações Unidas permitiram que uma leva de israelitas voltasse para a Palestina e
lá começasse a fundar o novo estado de Israel, que havia sido abolido
definitivamente pelos romanos em 135 da era cristã pelo Imperador
Adriano.
Essa nova repatriação dos judeus (a primeira
havia acontecido após a queda da Babilônia), provocou violenta reação dos povos
que viviam na Palestina, povos estes de cultura árabe. A maioria das nações
árabes protestou veementemente contra o fato de o povo de Israel voltar a
ocupar porções da terra palestina. Originaram-se nesse fato os conflitos que
ainda sacodem a Terra Santa nos dias de hoje. E á medida que Israel amplia seus
domínios na região, esse problema mais se acentua.
Uma visão maçônica desse tema
A maçonaria tem raízes muito fortes na
tradição de Israel. Na verdade, entendemos que a própria idéia que informa a
prática da maçonaria é uma derivação do ideal que fundamentou a fundação de
Israel como nação e o desenvolvimento de sua crença como povo eleito de Deus,
nação modelo para todos os povos da terra.
Em nossa visão, o proto-estado de Israel,
antes de se tornar um reino semelhante aos demais estados palestinos (após a
instituição do reinado), pode ser considerado como a primeira vivência maçônica
institucionalizada. Isso porque a tese que fundamentou o desenvolvimento do
estado israelita está centrada numa idéia utópica que poderia ser realizada
através da prática de uma fraternidade, ligada pelos laços do sangue e da
religião, e pelo compartilhamento de uma forte tradição. Destarte, o conflito
entre Isaque e Ismael pode ser visto, alegoricamente, como uma dissidência
ocorrida dentro da Grande Loja de Israel.
Os laços da Maçonaria com a tradição de
Israel já eram bem fortes entre os antigos Irmãos operativos, que viam em
figuras da tradição israelita os seus mestres arcanos. Figuras bíblicas como
Nenrode, o suposto construtor da Torre de Babel, Enoque, o patriarca que subiu
ao céu sem conhecer a morte, Seth, o filho caçula de Adão, e principalmente o
Rei Salomão e seu arquiteto construtor Hiram Abiff, já eram figuras importantes
na tradição mais antiga da Arte Real.
Essa relação se tornou ainda mais forte na
transição da maçonaria operativa para a especulativa, quando aos ritos
maçônicos foram incorporados diversos motivos históricos inspirados na história
de Israel, como a reconstrução de Jerusalém, os temas do Apocalipse, a
organização do estado de Israel sobre o Rei Salomão e principalmente o Drama de
Hiram, formidável alegoria que fundamenta a proposta iniciática da
maçonaria.
Algumas lendas cultivadas principalmente no
rito do Arco Real se referem á Abraão como verdadeiro mago,
conhecedor de segredos arcanos obtidos junto aos hierofantes da Caldéia. Esses
segredos, referentes principalmente á geometria e astrologia, teriam sido muito
importantes no desenvolvimento da tradição israelita e foram incorporadas pela
maçonaria.
Assim, a questão ideológica e racial que são
levantadas em relação ao episódio de Abraão e seus dois filhos são irrelevantes
para a maçonaria. A Maçonaria é uma organização ecumênica que não incentiva
debates desse tipo. Para ela tanto a Bíblia quanto o Alcorão são livros
inspirados, que revelam a vontade de Deus, expressa no pensamento dos profetas
que os receberam. Já as ideologias são doutrinas desenvolvidas por pessoas e
grupos que desejam fazer valer seus interesses particulares. Não cabe à Ordem
maçônica mundial discutir quem tem razão nessa pendenga. Talvez ambos tenham,
talvez ninguém tenha. O mais importante em tudo isso é a idéia inscrita na
esperança que informou a criação do estado de Israel, ou seja, a idéia de que a
humanidade deve ser um povo só, que se ligue pelos princípios da fraternidade e
do amor á beleza. Esse, aliás, foi o que disse o Cavaleiro De Ransay em seu
famoso discurso de 1738, quando ele começou a divulgar os ideais maçônicos por
toda a Europa.
“Os homens não de distinguem
essencialmente pelas diferentes línguas que falam, as roupas que usam, os
países que ocupam, ou as dignidades com que são investidos.
O mundo todo não passa de uma
república onde cada nação é uma família e cada indivíduo um filho. É para fazer
reviver e espalhar estas máximas essenciais, emprestadas da natureza do homem
que a nossa Sociedade foi inicialmente estabelecida.
Queremos reunir todos os homens de
espírito esclarecido, maneiras gentis e humor agradável, não só pelo amor às
belas artes, mas ainda mais pelos grandes princípios de virtude, ciência e
religião, onde o interesse da Fraternidade se tornam aqueles de toda a raça
humana, onde todas as nações podem recorrer a conhecimentos sólidos, e onde os
habitantes de todos os reinos possam aprender a valorizar um ao outro, sem
abrir mão de sua pátria.”[4]
A arte da maçonaria é informada, em seu
núcleo científico, pelos fundamentos da Geometria Sagrada. Nos princípios que a
informa, todas as formas se condensam em um princípio único. Assim, a esperança
maçônica é que um dia todos os povos da terra se estreitem numa Irmandade, não
importando a língua que falem nem as tradições que cultivem. A tolerância e o
amor ao belo e ao bom que cada cultura possui serão mais fortes que quaisquer
ideologias. Nesse dia, Isaque e Ismael se unirão num forte abraço fraterno, e
talvez o mundo que eles inspiraram com suas ideologias possa, finalmente
encontrar a paz.
[1][1] Javismo, ou a religião de Javé,
ou Jeová em português. Javé era o deus dos pastores residentes no norte da
Mesopotâmea, região de origem de Abraão.
[2] Os árabes, mercadores por
excelência, habitantes de tendas no deserto, eram chamados pelos israelenses de
ismaelitas.
[3] Judeus, os herdeiros do reino de
Israel.
[4] Excerto publicado por Jean Palou-
Maçonaria Simbólica e Iniciática- Ed.Pensamento, 1986.
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