Por João Anatalino
A filosofia de
Teilhard de Chardin
Entre os modernos
gnósticos, o jesuíta francês Pierre Teilhard de Chardin brilha como uma estrela
de máxima grandeza, por isso julgamos de fundamental importância fazer uma
pequena síntese do seu pensamento, porque ele encontra, em nossa opinião,
muitos paralelos nos temas que informam o ensinamento maçônico.
Teilhard vê o mundo
ordenado numa série de grandezas distribuídas ao longo de uma escala, que é o
eixo do espaço-tempo. Essas grandezas se distribuem em duas direções: uma, que
é aquela que vai do ínfimo para o imenso, representada por um universo em
constante expansão, formando os planetas, os astros, as galáxias, as grandes
massas estelares; essa expansão originou-se num ponto ínfimo de máxima
densidade energética, que justamente por hospedar essa inconcebível
concentração de energia, um dia explodiu. Essa explosão pode ser identificada
com o Big-Bang dos cientistas.
A outra direção é
aquela que parte do imenso para o ínfimo, representada pela tendência da
energia presente nas massas físicas, de enrolar-se sobre si mesma, criando
camadas energéticas cada vez mais densas, concentradas em pontos cada vez
menores. Essa é a direção que o espírito humano percorre. E assim é em virtude
do fenômeno da complexificação cada vez maior dos processos organizacionais, um
dos quais, o mais complexo, é o pensamento humano.
Na escala do
imenso, que são as grandezas cósmicas, domina a relatividade. As massas
estelares se formam por dispersão, partindo de um ínfimo inicial. Por isso, a
organização dos corpos materiais é simples. Neles são realizadas combinações
atômicas primárias e as realidades materiais vão surgindo dessas combinações,
povoando o nada cósmico. Na escala do ínfimo, porém, ocorre um processo
inverso. Neste domina o quanta.[1]
Ocorre uma
concentração energética, uma interiorização de energia para dentro dos
elementos, e disso resultam estruturas cada vez mais complexas, quanto mais a
energia se concentra sobre si mesma. Foi essa concentração energética em uma
molécula, que produziu, um dia, o primeiro organismo vivo, o qual evoluiu até
desembocar no homem.
Por isso, na psique
humana convivem as noções de ínfimo e imenso. Situado no ponto mínimo da
grandeza cósmica, e no ponto máximo da complexidade material, o homem debate-se
entre a glória de ser o organismo mais perfeito que a natureza criou, e a angústia
de ser tão pequeno entre as grandezas cósmicas, comparado a um grão de poeira
perdido na imensidão do universo.
É assim que,
pressionado entre o ser (complexidade/consciência), e o nada (que são os vazios
do conhecimento que tem que preencher), ele sente o arrebatamento do espirito
que perscruta a imensidão do universo, e sofre pela limitação que a matéria lhe
impõe, pois esta não lhe permite mover-se além dos estreitos limites de si
mesmo. Esse é o grande conflito que o homem enfrenta; uma eterna luta entre as
forças que o constroem.
Os seres vivos,
ensina Teilhard, podem ser grandes ou pequenos. Um dia já foram maiores, mas a
necessidade de adaptar-se ás condições de vida na terra, (resultantes da
compressão num espaço limitado), forçou-os a diminuir de tamanho.
Mais importante que
suas conformações externas, porém, é o fato de eles serem simples ou complexos
em suas estruturas, pois é a complexidade dos arranjos que as moléculas fazem
para compor um organismo que determina o grau de sua evolução. Dessa forma, um
micróbio, por possuir na sua estrutura uma complexidade maior do que a de uma
galáxia de estrelas dispersas, ocupa um lugar mais proeminente na escala da
evolução do que essa imensidade cósmica, por infinita que ela seja.
Isso porque,no
micróbio, a matéria já se organizou de tal forma que a vida se fez presente,
coisa que a galáxia ainda não conseguiu.
Nos seres
infinitamente simples, unicelulares, nada se constata além de mero
determinismo. Neles, tudo se comporta conforme as leis da estatística. Lei da
relatividade para o imenso, lei dos quanta para o infinitamente pequeno. Já nos
seres complexos, o que se percebe é a interiorização da energia. Tactismo nas
células, força vegetativa nas plantas, instintos nos animais, auto-organização
nos sistemas, consciência nos homens!
download (14)O ser, quanto mais complexo é em
sua estrutura, mais consciente se torna em sua interioridade. Dessa forma, a
evolução passa a ser um processo de convergência da energia presente na matéria,
dirigida para o interior dela mesma.
A consciência
humana nasceu, dessa forma, como um fenômeno energético que proporcionou a uma
espécie em particular, a condição de diferenciar-se e assumir, entre todas as
espécies criadas pela natureza, o próprio rumo no processo evolutivo. A
evolução, que até o surgimento do homem, era um processo controlado “por fora”,
através de leis exclusivamente naturais, a partir do homem passou a ser
controlado “por dentro”, tornando-se auto-evolução.[2]
A matéria e o espírito
No mundo da matéria
bruta, um fenômeno cósmico de concentração energética produziu, um dia, a
matéria viva. Esse acontecimento foi uma emergência descontinua numa sucessão
de eventos que se sucediam numa determinada ordem.O surgimento da vida não
representou apenas mais um degrau no ciclo evolutivo da natureza, mas sim, uma
mudança qualitativa na estrutura da matéria.
No mundo dos seres
vivos, o homem também é uma emergência descontinua dentro de uma escala de
eventos continuados, sucessivos e ascendentes. O homem é a própria vida
refletida. Seu surgimento inaugurou uma nova etapa no caminho da evolução, pois
a partir dele a evolução passou a ser autogerida. Como isso terá acontecido? Teilhard
pensa que, ao longo da evolução das espécies vivas, um processo de cefalização,
que pode ser entendido como uma centralização de energia em um determinado
órgão (o cérebro), ocorreu em uma das espécies. Essa centralização, ao longo do
tempo, foi produzindo cérebros cada vez maiores, seguindo uma trilha biológica
(filogenética), até desembocar no homos
sapiens. Daí, essa centralização proporcionou o salto evolutivo
(ontogenético), do mero reflexo condicionado do animal para a consciência
reflexiva do ser humano.
O universo, na
cosmogonia teilhardiana, pode ser visto como o conjunto total das realidades
espalhadas ao longo da reta espaço-tempo. Com a emissão dos pensamentos por
parte do homem, uma nova camada de elementos passou a envolver a terra: a
noosfera. A noosfera pode ser entendida como a centralização da totalidade
energética despendida pelos homens, em todos os tempos, no ato de pensar. É o
conjunto das reflexões humanas que se concentra sobre si mesma, criando uma
espécie de “atmosfera espiritual”. É esse celeiro energético de pensa-mentos
condensados que fornece o estofo para as nossas atividades psíquicas.
Partindo dessa
idéia, o processo de aculturação da humanidade passa a ser a jornada do seu
espírito coletivo, em busca de uma união que se consuma num ponto único do
tempo e do espaço, que Teilhard chama de Ponto Ômega. Visto dessa forma, a
evolução pode ser repre-sentada por um cone onde a base representa a totalidade
das realidades materiais e o seu vértice a totalidade das suas manifestações
energéticas, convertidas em espírito.
Assim, todas as
manifestações do espírito humano são etapas de um processo de evolução cósmica,
onde está presente, em maior ou menor grau, a energia na sua forma material, ou
já convertida em espírito. Teilhard vê nesse processo a explicação dos
fenômenos religiosos. Para ele, as religiões pagãs da antiguidade, tais como as
religiões egípcia, mesopotâmica, persa, grega etc. representaram momentos de
intensa espiritualidade, em que os cérebros humanos realizaram ingentes
esforços energéticos para realizar a união com a divindade. Da mesma forma, o
budismo, o hinduísmo, o taoísmo, enfim, todas as religiões não deístas, também
foram momentos em que essa aproximação foi tentada, mas por outros métodos.[3]
O cristianismo,
porém, na opinião de Teilhard, representou a etapa definitiva desse processo de
espiritualização progressiva da consciência humana, o momento-limite em que ela
contemplou a realidade divina em todo seu esplendor. Em suas próprias palavras,
Cristo é a condensação mais densa e perfeita da energia cósmica, na forma de
consciência/espírito, levada ao mais alto grau de densidade. Em suas próprias
palavras, “O Cristianismo é a forma última e axial da necessidade humana de
fundir-se com o divino, como ultimação do processo de evolução. Pleroma, ponto
final da evolução do espírito universal, Cristo é o próprio Ponto Ômega, o fim
da flecha da evolução. Bem aventurados os que entenderem essa realidade e a
firmarem em seus corações”.[4]
Em palavras de
intenso lirismo, Teilhard define assim a manifestação suprema dessa
espiritualização, que se realizou no homem Jesus Cristo: “Era preciso nada
menos que os labores terríveis e anônimos do Homem primitivo e a longa beleza
egípcia e a espera inquieta de Israel e o perfume lentamente destilado das
místicas orientais e a sabedoria cem vezes refinada dos gregos, para que, sobre
a haste de Jessé e da Humanidade, a Flor pudesse desabrochar. Todas essas
preparações eram cosmicamente, biologicamente necessárias para que o Cristo
entrasse no cenário humano. E todo esse trabalho era movido pelo despertar
ativo e criador de sua alma, enquanto alma humana eleita para animar o
Universo. E quando Maria o tomou nos braços, ela estava erguendo o mundo
inteiro”.[5]
O elo de ligação
Onde mais,
perguntamos, existe uma síntese mais perfeita dessa evolução material e
espiritual da humanidade, senão no ensinamento maçônico? Com efeito, é na moral
e na prática sincera da Arte Real que encontraremos uma perfeita interação
entre as tradições iniciáticas dos antigos povos, (a longa beleza egípcia, a
espera inquieta de Israel, a sabedoria grega e o perfume destilado das místicas
orientais presentes na grande tradição da gnose e do magistério de Hermes), com
a explosão final de espiritualidade que se condensou na figura ímpar, única,
singular, de Jesus Cristo.
Nesse elo de
ligação, que parecia perdido em meio à mixórdia política, filosófica e
ideológica que a Maçonaria moderna incorporou, eis a moderna teologia de um padre
jesuíta cantando um dueto com os gnósticos de ontem e de hoje. Pois tanto para
os antigos, como para os modernos pensadores dessa escola, o mundo é feito a
cada momento, de combinação em combinação, por um Espírito Supremo ou por
espíritos seus delegados. Na formação da realidade cósmica, que é una, espírito
e matéria aparecem sempre em aparente oposição. É somente através do
conhecimento que a mente humana pode vencer essa aparente contradição,
transpondo o domínio trevoso da matéria e atingindo o território luminoso do
espírito. Nesse processo ele tem que combinar sabedoria com inteligência.
Inteligência para compreender os processos pelos quais o universo acontece, e
sabedoria para saber utilizar essa descoberta.
De certa forma,
esse é o objetivo do magistério maçônico.
A ciência e a
mística
É por isso que a Maçonaria moderna foi buscar
nas grandes tradições da gnose e da cabala a maior grande parte dos temas
ritualísticos desenvolvidos em seus rituais. E isso não é sem razão. Essas são
as únicas disciplinas mentais que combinam, magistralmente, os caminhos da
sensibilidade e da razão, na busca de um conhecimento que não pode ser obtido
pelos meios intelectuais normais, mas apenas por experiência iniciática. Elas
integram, ao mesmo tempo, os métodos da religião e da ciência.
A religião busca a
revelação, a ciência quer o conhecimento. Ambas são condensações de um fenômeno
energético que ocorre nos domínios mais sutis do psiquismo humano. A revelação
pode ocorrer no curso de uma prece, de uma prática ritualística ou de um
trabalho de laboratório, na oficina ou outro lugar qualquer onde o pensamento
guie as mãos; já o conhecimento científico ocorre como soma de descobertas
feitas sistematicamente no decorrer de um processo de observação dos fenômenos.
O que torna diferentes esses dois caminhos de evolução psíquica é a
metodologia. Enquanto o cientista observa o fenômeno e descreve o que vê,
procurando entender por que ele ocorre daquele modo, o místico procura se
colocar no interior do próprio fenômeno, como parte dele, para senti-lo, e
dessa forma “ver, por dentro” a sua forma de ocorrência.
A ciência “vê” as
coisas pelo lado de fora, a mística as “sente” pelo lado de dentro. Talvez
esteja aí a razão de o delírio gnóstico e as intuições cabalísticas jamais
terem sido convenientemente entendidos pelos racionalistas, pois nunca foi
fácil descrever sentimentos, da mesma forma com que se faz com fenômenos
mecânicos. Se duas pessoas que compartilham o mesmo grau cultural e as mesmas
referências simbólicas forem convidadas a descrever o processo pelo qual a água
de uma chaleira se evapora, é possível que ofereçam uma descrição semelhante, e
uma mesma conclusão do por que isso acontece; porém, se lhes pedirmos que nos
descrevam o que sentem em razão desse fenômeno, e os motivos do porquê sentem
dessa forma, dificilmente encontraremos identidade nas respostas e coincidência
nas justificativas.
O método da Maçonaria
Na Maçonaria estão presentes os dois caminhos.
O caminho da espiritualização é aquele proposto pela gnose. Ele se trilha
através da prática iniciática, expressa nos rituais, nos símbolos e alegorias
desenvolvidos em cada grau. Nele se aprende pela sensibilidade. O caminho do
conhecimento racional é aquele que se condensa na própria proposta da
Maçonaria: o aprimoramento do espírito, através do estudo das disciplinas
morais que tornam o homem justo em seus julgamentos e perfeito em suas
atitudes. Esse conhecimento, que se inscreve no domínio da moral, é obtido pela
razão. Razão e sensibilidade podem e devem andar juntos. É a perfeita
integração desses elementos que produz a verdadeira sabedoria.
É nesse sentido que
o homem deve participar do movimento do mundo e não como seu mero observador. A
alma do estudioso, pela participação consciente no processo interativo que
formata as realidades universais, torna-se sua razão, e nessa condição ela
realmente ‘vê” o que acontece no interior das coisas, e essa visão é o
verdadeiro “saber”.
Esse método de conhecer o mundo, que é o método
gnóstico, psicológico, no dizer de Ouspensky, é um método que integra razão e
sensibilidade, ou se quisermos colocar isso de uma maneira mais sutil, é uma
forma que mistura o esotérico e exotérico, fundindo os dois domínios num único
e grande território de realidades possíveis de serem abarcadas pelo espírito
humano. Se é verdade que espírito e matéria são uma realidade só, que ambos
constituem uma unidade que se constrói mutuamente por interação de suas
informações nucleares, então essa visão não é um mero delírio metafísico. [6]
Afinal de contas,
toda religião tem como objetivo ligar a esfera do humano á esfera do divino.
Por isso todas elas procuram desenvolver uma visão do mundo, um conhecimento
interior que ilumina a alma do crente e o leva a algum tipo de ascese. Nenhuma
confissão religiosa, mesmo aquelas não deístas, como o confucionismo, o
taoísmo, o budismo etc., que trabalham esses caminhos através do exercício
mental ou pela sensibilidade, dispensam esse objetivo final, que é a iluminação
salvadora.
Não se deve
confundir gnóstico com mágico, como o fez a Igreja medieval. Embora muitos
gnósticos fossem adeptos do pensamento mágico, o gnosticismo se define pelo
exercício do livre-pensamento, a recusa de qualquer dogma, o conhecimento
deduzido das grandes leis da natureza, ainda que esse conhecimento seja
interpretado de maneira religiosa. A gnose cultua o saber pelo saber sem
temores ou crenças sobrenaturais. Aliás, para os gnósticos, o próprio
sobrenatural é apenas uma superação de leis naturais.
Evidentemente, sua
conotação como pensamento mágico é uma consequência natural da própria cultura
na qual ela se desenvolveu, cultura essa mais voltada para a ciência do divino
do que para as realidades da vida profana. O que os modernos gnósticos (e os
maçons) fazem é exatamente isso: mostrar a gnose sobre um novo enfoque, agora
que a inteligência humana conseguiu se livrar de seus velhos temores
sobrenaturais e pode comprovar, pelos avanços da pesquisa científica, que a
natureza é, em si mesma, um verdadeiro repertório de milagres.
É nesse sentido que
podemos classificar o ensinamento maçônico entre as disciplinas conhecidas como
gnósticas.
[1] Quanta:
quantidade mínima de energia que pode ser detectada. Divide-se em onda ou
partícula.
[2] Na imagem, o
padre Pierre Teilhard de Chardin
[3] Religiões não
deístas são aquelas que não foram “reveladas” ao homem por uma divindade, mas
sim desenvolvidas por ele como forma de se comunicar com elas.
[4] Teilhard de
Chardin - O Mundo, o Homem e Deus, Ed. Cultrix, 1984
[5] Idem, pg.29. Na
imagem, o Grande Arquiteto traça os planos do universo. Gravura de William
Blake.
[6]Piotr
Demianovitch Ouspensky. Um Novo Modelo do Universo, São Paulo, Ed. Pensamento,
1928.A GNOSE MAÇÔNICA
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