Por Marden Maluf (*)
O
talento do grande Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) para o novo é algo
indiscutível. A mestria que adquiriu no artesanato do ofício não pode ser
questionada. Impossível um amador realizar, por exemplo, a “Sinfonia 41”, dita
Júpiter.
O
terrível, porém, é a asfixia que o grande Amadeus sofreu por causa da incrível superficialidade,
essência da época em que viveu, do malfadado rococó clássico.
Isso
é facilmente verificável em cada uma de suas mais de seiscentas obras
catalogadas. Em determinado trecho, eis que surge o Mozart verdadeiro. Mas,
lastimavelmente, no trecho seguinte, eis não mais Mozart, mas um Wolfgang
qualquer, obrigado a rabiscar a torturante mediocridade da aristocracia e da
burguesia reinantes em seu tempo.
O
“Réquiem”, última obra de Mozart, trabalhada no leito de morte, é a composição
na qual, até o último instante, fato único e trágico, o nosso gênio teve
finalmente licença de comprometer-se apenas consigo mesmo. Mozart em todas as
notas.
Ele
próprio sabia disso. Embora houvesse recebido esse “Réquiem” por encomenda de
terceiros, afirmou desde o primeiro instante: “Escrevo esse canto fúnebre para
mim mesmo”. É a única peça que escreveu não para os outros, mas para o seu
espírito.
O
espírito de Mozart, contrário ao de sua época e ao que dele hoje se diz, não
era nem infantil, nem mesquinho, nem frívolo. Um espírito assim não teria
capacidade para dominar a ciência das estruturas sonoras em tão alto grau.
Perante
o sufocamento que a época de Mozart representava para seu espírito, a Maçonaria
lhe foi a dádiva suprema, elevada à vital refrigeração.
Mozart
foi um maçom apaixonado pela Maçonaria. Há registros de sua Iniciação e
Elevação, embora não se tenha encontrado sua Exaltação ao Mestrado, mas
certamente galgou degraus outros na Escola Filosófica. Na “Flauta Mágica”,
ópera maçônica e dedicada à Maçonaria, há referências simbólicas explícitas aos
mais diversos estágios. Além disso, compôs significativas Cantatas Maçônicas,
cujo sucesso entre os Irmãos muito o alegravam. Amava e frequentava, de
coração, a grandeza filosófica da instituição.
Acredito
que a crença em Deus segundo os princípios da Ordem foi o que deu a Mozart
forças para viver seus últimos cinco anos. Não há registro de outro grande
compositor que tenha sido obrigado a suportar tamanha carga de pressões em seu
trabalho criador, somando-se ainda — fato pouco conhecido — problemas físicos
de toda ordem.
Sob
tal aspecto, vejam-se algumas condições físicas em que o “anjinho” Mozart
desenvolveu o que hoje se costuma considerar obras “felizes e despreocupadas”.
Em
1762 (então com apenas seis anos de idade), contraiu uma infecção nas vias
respiratórias superiores, devido a uma infecção estreptocócica. Tempos depois,
o menino contraiu uma doença que o médico pensou ser escarlatina, mas que, na
verdade, era um chamado erythema nodosum, quase certamente uma infecção
estreptocócica. Neste mesmo ano, contraiu outra infecção e sofreu um ataque de
febre reumática. Durante o ano de 1764, em Paris e Londres, Wolfgang teve
tonsilite ou amigdalite (abscesso paritonsilar) e, outra vez, em 1765, padeceu
desses mesmos males, complicados por uma sinusite. Em dezembro de 1765 (então
com nove anos), entrou em coma e perdeu muito peso. Os terríveis sintomas
incluíam toxiquemia aguda, pulso fraco, delírio, erupção de pele, pneumonia,
exfoliação hemorrágica da membrana mucosa oral, sugerindo uma febre tifoide
endêmica. Etc. etc. ...
Esse
impressionante quadro de males ininterruptos segue pela vida afora, em um
relatório médico de páginas e páginas, baseado nas fontes atuais sobre Mozart.
Espantosa não é a tragédia de haver morrido com apenas 35 anos, mas o milagre
de ter vivido tanto, apesar de tudo.
Os
ataques morais deviam abater-lhe mais do que os males do corpo. Ele foi chamado
de “caçador de dissonâncias”, “porcaria alemã” (atenção: Mozart é músico alemão
— com pensamento e profundidade alemãos! —, e não austríaco, como todos
imaginam e a Áustria se gaba. A sua Salzburg natal era, à época, território
alemão) e outros xingamentos assim, veementes e constantes, inclusive por
nobres de outros países. Por outro lado, claro que tinha grandes e numerosos
defensores e era famosíssimo em sua época.
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O
grande exemplo da existência de Wolfgang Amadeus Mozart, obras artísticas
geniais à parte, é a coragem de haver feito o que fez em condições tão
contrárias. É quase impossível, em 35 anos, tempo de sua vida, um bom copista
copiar o que Mozart escreveu, ou melhor, o que sobrou do que escreveu.
Entenda-se: um bom copista, em trabalho contínuo e ininterrupto, em perfeito
estado de saúde e dedicação exclusiva.
Como
pôde Mozart fazê-lo, viajando incessantemente, nas condições precárias daquela
época, atacado sem trégua por exércitos de males físicos e psicológicos, e,
ainda assim, compondo (não simplesmente copiando o já pronto), ou seja, tendo a
ideia, rabiscando, voltando atrás, consertando? E, nos entretempos, tocando em
concertos, ensaiando, regendo, escrevendo uma quantidade fenomenal de cartas e
todo o infinito problemático e inenarrável do dia a dia?
Eis
aqui em Mozart, como em Cervantes e em Aleijadinho, a essência fulgurante do
verdadeiro Mestre, a coragem indômita frente a qualquer espécie de inimigo, o
avançar contínuo do gênio, que se aperfeiçoa conforme as guerras das quais não
foge.
A
grandiosa coragem (a bravura frente ao perigo!) — a verdadeira e principal
coluna maçônica —, o exemplo brandido a essa Humanidade que se prostra, derrotada,
ante uma simples dor de qualquer espécie.
O
exemplo sempre foi não apenas o melhor conselho, mas o grande símbolo!
Congratulamo-nos
com o Ir. Mozart, que nunca desistiu da terrível batalha contra o habitar a
poderosíssima franzinidade de um Wolfgang pequenino e doentio. Wolfgang perdeu,
e morreu. Porém Mozart — triunfante! — continua mais vivo do que nunca, a esbofetear
todas as almas mesquinhas com a grandeza de sua maçônica vitória
(*) Marden Maluf é maestro, fundador e diretor artístico
das Classes Musicais do Grande Oriente do Brasil.
Fonte: Ao Zenite
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