(*)
Por Daniel Simões do Valle
![]() |
Ewerton Quadros:
entre os espíritas que já lutavam pelo
fim da escravidão
quando se converteram à doutrina
|
A
ideia da abolição tornou-se, ao longo da década de 1880, um guarda-chuva sob o
qual se agasalharam-se diferentes tendências e matizes”, esclarece a
historiadora Maria Helena Machado, em o plano e o pânico. Nesse rol,
podemos incluir as propostas defendidas pelos espíritas. A preocupação dos
adeptos da doutrina codificada por Allan Kardec com a escravidão já vinha de
longa data.
Em
julho de 1869, o primeiro periódico espírita brasileiro, publicado em Salvador,
assumia o seguinte compromisso: O Écho d’Além-Tumulo deduzirá
de cada assinatura realizada 1$000, cuja soma será anualmente publicada e
destinada para dar liberdade a escravos, de qualquer cor, do sexo feminino, de
4 a 7 anos de idade, nascidos no Brasil”.
Para
alguns espíritas, o compromisso com o fim da escravidão precedeu sua conversão
à doutrina. Esse era o caso de importantes lideranças do espiritismo na corte,
como Antônio da Silva Neto, Adolfo Bezerra de Menezes Cavalcanti, Francisco
Leite de Bittencourt Sampaio e Francisco Raimundo Ewerton Quadros. Ainda na
década de 1860, eles já se haviam manifestado contrários ao trabalho escravo.
Naquela
época, a proposta mais recorrente era “emancipação”, que consistia em adotar
medidas paulatinas que contribuíssem para substituir gradativamente a mão de
obra escrava pelo trabalhador livre. O termo “abolição” era evitado nas
discussões políticas, uma vez que a possibilidade de libertar todos os escravos
de uma só vez era refutada até mesmo por alguns dos que condenavam o cativeiro.
Temia-se que tal decisão pudesse redundar em drásticas consequências, tais
como: a desorganização da produção agrícola, a crise econômica, o despreparo do
escravo para a vida em liberdade e a desordem social. Por isso, havia o
entendimento de que era necessário preparar o país para a mudança.
Libertar e educar
os escravos
Movido
por esse ideal e com intuito de propor soluções para o problema, o engenheiro
Antônio da Silva Neto publicou três trabalhos:Estudos sobre a emancipação
dos escravos no Brasil (1866), Segundos estudos sobre a
emancipação dos escravos no Brasil (1867) eA Coroa e a emancipação
do elemento servil (1869). Neles, defendia a libertação dos filhos das
escravas, a adoção de medidas para educá-los e a extinção da escravidão no
prazo de 20 anos.
Bezerra
de Menezes, médico e político reconhecido na corte, tomou iniciativa semelhante
e, em 1868, publicou o opúsculo A escravidão no Brasil e as medidas que
convém tomar para extingui-la sem dano para a nação, no qual também
defendia a libertação dos filhos de ventre escravo.
A
proposta apresentada por ambos não era uma novidade, nem eles eram os únicos a
defendê-la. Na verdade, ela estava presente nos jornais e nos folhetos que
circulavam pelas ruas da corte. Além disso, tal medida encontrava-se em
discussão no Parlamento, mas só seria aprovada em 1871, por meio da Lei do
Ventre Livre.
Esse
debate público sobre a escravidão se acirrou nos anos seguintes e fervilhou na
década de 1880, quando já se defendia abertamente a necessidade urgente de
abolição do trabalho escravo. Nesse contexto, a imprensa tornou-se uma
verdadeira tribuna política. José do Patrocínio (1853-1905) é um caso exemplar
de como os abolicionistas utilizaram os jornais para formar uma opinião pública
favorável ao fim da escravidão. Atuando à frente de alguns periódicos, como Gazeta
de Notícias, Gazeta da Tarde e Cidade do Rio,
ele disparava constantes ataques contra o escravismo.
Nesse
momento, Antônio da Silva Neto, Bezerra de Menezes, Bittencourt Sampaio e
Ewerton Quadros estavam em plena militância espírita, ocupando papel de
destaque em instituições espíritas da corte e contribuíam ativamente nos
periódicos espíritas em circulação. As experiências adquiridas por esses homens
em suas trajetórias intelectual, profissional e política exerceram forte
influência na condução dada por eles ao trabalho de difusão do espiritismo no
Brasil. Com suas convicções e em diálogo com os princípios espíritas, eles
contribuíram para que as instituições espíritas se posicionassem diante do
debate sobre a escravidão.
Kardec e a
escravidão
Em O
livro dos espíritos, Allan Kardec foi bem claro ao tratar do assunto. Ao
serem questionados, os espíritos responderam: “É contrária à lei de Deus toda
sujeição absoluta de um homem a outro homem. A escravidão é um abuso de força.
Desaparecerão com o progresso, como gradativamente desaparecerá todos os
abusos”. Desse modo, o direito à liberdade seria um princípio fundamental da
doutrina espírita por ser uma lei divina, logo toda forma de escravidão seria
condenável. No entanto, que interpretação os espíritas fizeram desse
ensinamento? As páginas da imprensa espírita trazem as respostas para essa
questão.
No
final do século XIX, a imprensa consolidara-se como um importante veículo
difusor de ideias. Havia mais jornais em circulação e crescia o público leitor.
Os espíritas estavam atentos a essas mudanças e, desde cedo, elegeram os
periódicos como um canal de propaganda espírita. Na década de 1880, circulavam
na corte dois importantes periódicos espíritas: a Revista da Sociedade
Acadêmica Deus, Cristo e Caridade e O Reformador.
A imprensa espírita tinha como principal objetivo a divulgação dos princípios
da doutrina e a refutação dos ataques dos detratores. No entanto, não se omitia
em relação às questões em debate no cenário nacional e não foi diferente quanto
à escravidão e sua abolição.
Desde
o início, a imprensa espírita assumiu uma postura contrária à escravidão, mas
nem sempre defendeu a abolição. Em artigo publicado em julho de 1882, na Revista
da Sociedade Acadêmica Deus, Cristo e Caridade, a redação do periódico
manifestava-se a favor da emancipação dos escravos, mas afirmava que “a
abolição é prejudicial ao escravo e perniciosa à sociedade”. No entanto, ao
longo da década de 1880, com o avanço da campanha abolicionista, houve uma
mudança de posicionamento. Os espíritas foram abandonando o tom mais moderado e
passaram a defender o fim imediato da escravidão.
Para
os espíritas da corte, a extinção do cativeiro era uma entre outras reformas
fundamentais para o progresso do país, tais como: o estabelecimento de um
Estado laico (uma forma de limitar o ainda marcante poder da Igreja), a
liberdade de consciência, a garantia do acesso à terra e o estímulo à vinda de
imigrantes. Desse modo, além de dialogarem com os abolicionistas, os espíritas
também estavam integrados ao debate político da época, adotando posicionamentos
que os aproximavam de certos agrupamentos políticos como os “novos liberais”,
os “liberais republicanos” e os “positivistas abolicionistas”.
Nas
páginas da imprensa, os espíritas defenderam o fim da escravidão por via legal,
sem estimular agitações ou revoltas. Seu discurso sempre esteve voltado para os
senhores de escravos, os legisladores e o governo imperial. Em 15 de novembro
de 1884, um artigo publicado no Reformador, assinado com o
pseudônimo de Sedora, cobrava da classe política uma atitude para livrar o país
dessa doença: “Façam os estadistas como os cirurgiões, extirpem o cancro que
vicia e corrói o organismo social, acabem com a escravidão”. Noutras ocasiões,
o recurso era apelar ao sentimento cristão da população, em especial dos
senhores, para estimulá-los a conceder alforria aos seus cativos.
Com a reencarnação,
“o senhor de hoje é o escravo de amanhã”
![]() |
Opúsculo
publicado por Bezerra de Menezes em 1868
|
Assim
como outras correntes abolicionistas, os espíritas avaliavam o problema da
escravidão considerando os aspectos políticos, econômicos e sociais; no
entanto, eles construíram discursos originais ao analisar a questão do ponto de
vista espiritual. Na perspectiva espírita, a luta contra a escravidão era um
movimento que ocorria em dois planos: no material e no espiritual. Em várias
oportunidades, eles rogaram a assistência da espiritualidade na condução do
problema, atribuíram os avanços obtidos ao apoio dos espíritos desencarnados e
divulgaram comunicações espíritas favoráveis ao fim do cativeiro.
Durante
evento, em 1886, que lembrava o desencarne de Allan Kardec, o orador, Manoel
Fernandes Figueira, evocou o auxílio do mundo espiritual: “Venha toda essa
legião de espíritos da América do Norte para auxiliar a obra da redenção na
América do Sul” (Reformador, 1º de maio de 1886). Figueira pedia a contribuição
de alguns ilustres já desencarnados como Washington, Lincoln, Victor Hugo, Luís
Gama e tantos outros que haviam dado provas de “ardente caridade”. Desse modo,
os espíritas entendiam que a transformação social seria fruto do intercâmbio
entre o mundo terreno e o mundo espiritual.
A
reencarnação também foi um argumento importante para sensibilizar ou mesmo
ameaçar os senhores. “Se conheceis a verdade da multiplicidade das existências
humanas, sabereis também que o senhor de hoje é o escravo de amanhã, como este
já foi o dominador da véspera” (Reformador, 13 de maio de 1885). Na perspectiva
espírita, a situação do senhor era pior do que a do escravo, pois este já
estaria expiando suas faltas nesta existência, enquanto o senhor, ao subjulgar
seu irmão, estaria comprometendo seu futuro espiritual e assumindo novas
dívidas perante a justiça divina.
“Podemos,
pois, nós que trabalhamos por ser espíritas, esquivar-nos a auxiliar aqueles
que se afanam na grande obra de redenção dos cativos?” (Reformador,
“Emancipação”, 13 de maio de 1885). Tal pergunta soava como uma convocação. O
Reformador, então órgão oficial da Federação Espírita Brasileira, conclamava os
espíritas a cerrar fileiras com os abolicionistas. Em sucessivos artigos,
durante a década de 1880, o periódico defendeu ser um dever de todo espírita
apoiar a causa. Em 15 de julho de 1887, o compromisso era reforçado: “A nós
espíritas que respeitamos o Cristo como o nosso Mestre, o nosso Modelo e o
nosso Chefe cabe o posto de avançada nesta cruzada bendita de liberdade”. De
fato, os espíritas abraçaram a causa.
Cartas de alforria
nos centros espíritas
Durante
a campanha abolicionista, as instituições espíritas da corte mobilizaram-se
frequentemente para arrecadar donativos que poderiam ter como destino o Fundo
de Emancipação, ou mesmo a compra imediata da carta de liberdade. Nas festas
organizadas pelos espíritas nas datas de nascimento e desencarne de Allan
Kardec ou no aniversário de um centro espírita, o ponto alto era a entrega de
uma carta de liberdade a um escravo.
Segundo
o historiador Eduardo Silva, no artigo “Resistência negra, teatro e abolição”,
essa prática havia se tornado comum entre os abolicionistas. Ele afirma que
“não houve grande benefício, festa ou comemoração abolicionista que não se
encerrasse com a libertação de um ou mais escravos, levando os espectadores ao
arrebatamento, às lágrimas e ao convencimento íntimo”.
Havia
uma rede envolvendo os espíritas e os movimentos abolicionistas. Um “grande
número de associações libertárias, beneficentes, abolicionistas, lojas
maçônicas e órgãos da imprensa” enviava seus representantes para os eventos
realizados pelas instituições espíritas, conforme noticiou o Reformador em 15
de maio de 1883. Os espíritas, por sua vez, marcavam presença nas atividades
organizadas por esses grupos e divulgavam suas ações em seus órgãos de
informação.
Em
março de 1884, quando a corte mergulhou em longos dias de festejos para
comemorar a abolição da escravidão no Ceará, a Federação Espírita Brasileira
nomeou comissões para representá-la no evento e, através do Reformador saudou o
esforço das sociedades abolicionistas e a importante vitória conquistada.
Em
13 de maio de 1888, o clima de alegria que envolveu a cidade do Rio de Janeiro
foi ainda maior e se estendeu por uma semana de comemorações. A extinção da escravidão
no Brasil foi um acontecimento intensamente exaltado nas páginas do Reformador.
Ao longo da década de 1880, o abolicionismo havia deixado de ser uma convicção
de algumas lideranças espíritas para se tornar um posição adotada pelas
instituições espíritas da corte. Desse modo, a imprensa espírita representou o
pensamento de uma coletividade que, além de ser espírita, era abolicionista.
(*) Daniel Simões
do Valle, mestre em História social pela UFF, é professor da rede pública dos
municípios de Duque de Caxias e do Rio de Janeiro
0 Comentários