Por Ir.'. João Anatalino
Os
praticantes da antiga arte da alquimia acreditavam que a matéria prima da sua
obra sobre a qual deveriam trabalhar, em busca da pedra filosofal, era um
depósito de energias desorganizadas. E que no seu interior habitava uma chama
divina, que liberta das suas amarras físicas, daria ao seu libertador o
controle sobre todas as forças da natureza. Para eles, era também essa energia,
que devidamente organizada, dava a todos os corpos, minerais, vegetais ou
animais, suas conformações físicas, fazendo deles um elemento químico, uma
planta ou um animal, Essa energia era a essência que nós chamamos de espírito,
e esse espírito estava presente em todas as coisas, animadas de inanimadas.[1]
Assim,
o espírito, que é pura luz, pura energia, habitava em meio á trevas. Ao ser
libertado precisava ser convenientemente dirigido. Pois assim como os núcleos
atômicos de materiais pesados que são rompidos sem medidas de controle podem
causar explosões imensas, com danos irreversíveis para o operador e para o
ambiente, também o espírito liberado sem direcionamento, sem “magistério”
próprio, pode causar terríveis perturbações. Por isso toda disciplina
espiritual precisava de uma iniciação, um mestre e um adequado ritual de
transmissão desse magistério, para que ela pudesse ser conduzida de com
segurança, de forma a produzir a iluminação pretendida pelo iniciado e não
o descalabro da sua consciência. Pois
como dizia o iniciado Rabelais, “ciência sem consciência é apenas ruina da
alma”.[2]
Maçonaria
e alquimia são ramos da mesma árvore filosófica, que também produziu o
movimento rosacruciano e uma grande parte do pensamento místico que influencia
grande número de intelectuais em nossos dias. Nessa árvore também
encontraremos, por exemplo, o Espiritismo, a Teosofia, o Hilozoísmo e outras
grandes correntes do pensamento moderno, que procuram estudar o complexo
matéria-espirito, para fins entender adequadamente o universo e a vida que nele
habita.[3]
Como
prática corporativa, a alquimia é mais antiga que a maçonaria. Ela nasceu nos
antigos templos do Egito, como arte sagrada, praticada pelos sacerdotes
egípcios para a confecção de objetos dourados. Na maçonaria ela entrou pelas
mãos dos “maçons aceitos” do grupo rosacruciano, ali pelo início do século
XVII. Logo ganhou adeptos em todas as Lojas Especulativas, provavelmente pela
analogia que as tradições alquímicas guardavam com a prática dos maçons
operativos, que buscavam o aprimoramento do espírito através do trabalho
manual.
Para
os alquimistas, o processo de manipulação da matéria prima nos laboratórios
promovia no espírito do operador a mesma transmutação espiritual que o trabalho
do construtor de edifícios sacros realizava. Ambas eram práticas sacralizadas,
que levavam ao êxtase espiritual aqueles que nelas eram iniciados. O arquiteto-construtor
quando terminava o seu edifício sacro, o alquimista quando conseguia obter a
pedra filosofal obtinham a “iluminação”.
Assim,
a esperança alquímica de revelação divina, através da manipulação da matéria,
estava no mesmo nível da esperança maçônica, sonhada pelos antigos maçons
operativos. O que se buscava, em ambas as práticas, era a obtenção da Gnose, ou
seja, o supremo conhecimento dos segredos da natureza, através do qual o homem
se integrava á divindade, recuperando a condição perdida em razão da sua
queda.[4]
Tanto
a antiga maçonaria quanto a alquimia eram práticas operativas. Ambas envolviam
o trabalho das mãos e a disciplina do espírito. Ao se fundirem, no início do
século XVII, por iniciativa dos pensadores rosacrucianos, ela se tornou uma
prática espiritualista laica, que integrou em seu corpo doutrinário outras
tradições antigas que a intelectualidade da época se recusava a abandonar, tais
como a ritualística da Cavalaria e os benefícios do sistema corporativo das
guildas medievais, por exemplo.
Que
os pressupostos da prática alquímica e da maçonaria operativa fossem associadas
a uma disciplina espiritual, visando o mesmo resultado, não causa nenhuma
perplexidade. Afinal, o que pregavam as crenças religiosas e as tradições
iniciáticas de todos os tempos, senão a idéia de que o espírito humano é uma
essência que deve ser expurgada de todas as impurezas, para tornar-se uma
entidade “luminosa”, limpa, pura, capaz de alçar-se ao território das
divindades e com elas conviver num nível de igualdade? E não era essa também a
finalidade da religião, a meta da filosofia, a esperança gnóstica e a
realização derradeira de toda experiência mística?
Por
essa e por outras razões, tanto a alquimia quanto a maçonaria das Lojas
especulativas sempre provocaram a desconfiança da Igreja. Conquanto nenhuma das
duas tradições jamais tivesse reivindicado status de disciplina religiosa, como
as diversas seitas que incomodaram a Igreja ao longo da História, seus adeptos
desafiavam o monopólio da religião de Roma como único caminho para a iluminação
do espírito. Isso porque o alquimista, tanto quanto o arquiteto e o
pedreiro-livre, construtor das grandes catedrais medievais, era considerado um
“eleito dos deuses”, um homem cuja consciência foi desperta pelo ingresso nos
segredos mais íntimos da natureza. Assim como os grandes mestres do
conhecimento arcano ele possuia a Gnose, a verdadeira sabedoria que tudo
transformava, coisa que a Igreja admitia somente aquele que comungasse da
“União em Cristo” que só ela proporcionava.
Com
o desenvolvimento das técnicas modernas de pesquisa científica e o
desenvolvimento da arquitetura moderna, as práticas operativas da alquimia e da
arquitetura antiga caíram em desuso. Mas não o espírito que as amparava. Por
analogia, toda a simbologia que se aplicava ao alquimista e ao maçom operativo
foi transferida para os Irmãos das Lojas especulativas, homens regenerados pela
iniciação, possuidores de uma consciência superior, que lhes permite “ver” e
agir num domínio ampliado pela visão interior que a prática da Arte Real lhe
promete.
Não
é sem motivo que muitos autores sustentam que o objetivo da moderna maçonaria é
a realização de uma obra espiritual comparável á grande obra dos alquimistas,
representada pela pedra filosofal. Não é também irracional a comparação que se
faz entre a construção simbólica do Templo de Salomão e a obtenção dessa
“pedra”, capaz de transformar minerais impuros no mais puro ouro. E não é
também por acaso que a iniciação maçônica, e o seu próprio catecismo, são
pródigos de evocações a símbolos alquímicos. E tanto se pode dizer que a
maçonaria moderna é uma espécie de Cavalaria simbólica, quanto uma forma de
alquimia praticada simbolicamente em uma Loja, ao invés de um laboratório,
tendo como matéria prima o psiquismo do praticante, e como finalidade a
transmutação do próprio operador.
Bernard
Rogers resume bem essa questão: “O
objetivo que os franco-maçons perseguiam é a construção do Homem, isto é, da
Humanidade Autêntica, concebida como projeto, a partir da construção do
individuo”, escreve aquele autor. “Não causará surpresa”, prossegue ele, “o
fato de que o eixo em torno do qual eles estabeleceram seu simbolismo seja a
construção do Templo de Salomão, sendo o ser humano considerado como a morada
da divindade. A quem venha opor esse propósito a afirmação de que há
franco-maçons ateus, respondamos que nenhum desses, a menos que não mereça sua
qualificação, poderia pelo menos negar sua fé na perfectibilidade do homem,
cuja natureza divina- isto é- luminosa- não pode deixar de ser reconhecida por
quem não tem medo das palavras e se recusa a tornar-se escravo do que esta ou
aquela religião possa exigir dele”. [5]
Por
acaso também não é que a disposição dos símbolos, numa Loja maçônica,
assemelha-se, de forma notável, à quarta prancha do Mutus Líber dos
alquimistas. É que ambas são visões simbólicas do universo. Nelas se representa
a “energia dos princípios”, responsável pelas transformações internas e
externas que se realizam na natureza e no homem. É também no interior de uma
Loja que a mística da Palavra Perdida, o Verbo Divino, o Número Único, que na
Cabala hermética representa o Principio Criador de todas as coisas, e na
alquimia a ” flos coeli “,“o dom de Deus”, é captada pela alma humana no
momento da iniciação. É essa energia que age, á medida que a cerimônia avança,
para a realização da transmutação do neófito, conferindo-lhe um status que o
eleva de sua condição anterior de profano á condição superior de iniciado.[6]
Assim,
a analogia entre o magistério alquímico e a prática maçônica se completa com a
visão de que há uma perfeita similitude nos objetivos de ambas as tradições.
Pois da mesma forma que na prática
alquímica o “metal” se regenera a partir de uma conjunção entre a luz e as trevas,
na maçonaria essa regeneração é operada a partir do sol e da lua. Estes astros
estão representados no Oriente da Loja, atrás do trono do Venerável Mestre. É
da luz que vem do Oriente, a partir da consagração dada pelo Venerável, que o
iniciado atinge a qualidade de homem renascido, após ter sofrido a morte
psíquica, simbolizada por sua passagem pelos subterrâneos e sua descida ao
ventre da terra.
Após
ter passado um período perdido nas trevas, realizando diversas provas e
viagens, o neófito “vê” a luz, no momento em que lhe são retiradas as vendas
dos olhos. Momento singular de sua iniciação, o recipiendário percebe que essa
luz lhe é projeta pelo reflexo dos astros ali representados, simbolizando que
ele, finalmente, superou a primeira fase de sua jornada iniciática e sabe agora
da existência de uma verdade maior que precisará ser descoberta.
Aqui,
mais uma vez, a correspondência entre a “iluminação” maçônica e o despertar da
consciência do operador alquímico é evidente: o Aprendiz maçom, que durante
longo tempo permaneceu num estado de semente, lançada num profundo negro,
evolui para o branco da regeneração, quando se torna Companheiro e conhece o
vermelho da ressurreição ao tornar-se Mestre. O Mestre que renasce a partir de
Hiram morto, eis o apogeu do processo que simboliza o nascimento de um maçom na
sua plenitude iniciática, pois ao iniciar-se Aprendiz, e ao elevar-se a
Companheiro, ele ainda está em processo de gestação. Como na prática alquímica
será preciso um longo processo de manipulação e aprimoramento do seu caráter
até que ele se torne, enfim, o Homem Universal, alicerce da nova sociedade,
justa e perfeita, que a maçonaria se propõe construir.
Essa
é a alquimia que se processa no interior de uma Loja Maçônica, que nesse mister
repete o trabalho feito no laboratório do Adepto.
Por
isso é que se diz que aqueles temerários que batem profanamente á porta do
templo, a fim de se iniciarem nos Augustos Mistérios dos Obreiros da Arte Real,
ali estão em busca de luz. É que na desordem que reina no mundo dos homens,
esses corações sensíveis sentem a necessidade de buscar o exato equilíbrio
entre suas necessidades no mundo profano e as exigências do mundo sagrado, que
são de cunho espiritual. Sem ordem e harmonia em suas próprias vidas, não as
pode transmitir á comunidade em que vive, pois ele mesmo não as possui. Mas
como o metal da obra alquímica e o próprio caráter do operador, ambos precisam
ser purificados.
Ontem
como hoje, as esperanças da humanidade são as mesmas: ela quer viver num estado
de harmonia, equilíbrio social e ordem. Se as formas de se buscar esse estado
ideal mudam, e as visões assumem diferentes configurações, o conteúdo
significante dessas visões, no entanto, são os mesmos. Em todos os tempos os
homens repetem as mesmas fórmulas e sentem os mesmos anseios. Assim, o neófito
que busca a realização maçônica carrega na sua alma o mesmo anseio do Adepto
que se iniciava na Arte de Hermes. E tanto nos laboratórios dos artistas da
Obra, como nos templos maçônicos de hoje, quando um Irmão é iniciado ouve-se
dizer que A LUZ FOI FEITA , A LUZ SEJA DADA AO NEÓFITO.
Assim
nasciam os Adeptos, assim nasce um maçom.
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[1] Aristóteles chamava essa energia
primordial de enteléquia, ou seja, o principio fundamental que está na origem
de todos os seres, animados ou inanimados.
[2] Francóis Rabelais- Aventuras de Gargantua
e Pantagruel, Ed. 1960.
[3] Hilozoísmo -do grego hyle, matéria, e zoe,
vida- é um termo da filosofia grega anterior á Aristóteles (os chamados
pré-socráticos) que atribui sensibilidade á todos os seres da natureza,
inclusive a matéria inerte. Em outros termos, o hilozoísmo considera o próprio
universo um ser vivo.
[4] Referência ao episódio bíblico da expulsão
do paraíso, aqui entendido como sendo a aquisição do conhecimento á revelia do
Criador, como os gnósticos acreditavam.
[5] Descobrindo a Alquimia- Ed Círculo do
Livro, 1986
[6] Mutus Liber, o Livro Mudo, é uma coleção
de quinze desenhos mostrando, alegoricamente, todas as fases do processo
alquímico. De autor ignorado, é considerado a “Bíblia dos alquimistas”.
1 Comentários
Excelente,maravilhoso,profundamente esclarecedor
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