A FLAUTA MÁGICA

Por Marcelo Xavier
1791, o compositor Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) recebeu uma insistente encomenda de um empresário de um teatro dos arredores de Viena, Emanuel Schikaneder. A história, um tanto exótica, parecia fazer o gosto da platéia da época, que vivia num curioso modismo de costumes "orientalistas".
Era uma história fantástica, num enredo típico de contos de fadas, que fala de um príncipe e uma princesa, uma rainha e um sacerdote malvado e um carismático passarinheiro. A ópera, que seria apresentada como singspiel (cantada e falada) para um público de gosto popular (algo que só se efetivaria com o advento do Romantismo, no século XIX), se chamava A Flauta Mágica (Die Zauberflöte) e se transformaria na obra-prima do compositor mais ilustre da capital dos Habsburgos.
Apesar do enredo aparentemente simples, parte da crítica notou que, além de "orientalismos", a história era uma espécie de alegoria do universo da Maçonaria em que Mozart vivia e falava de valores que se aproximavam muito do pensamento Iluminista. Como disse alguém a respeito da peça, "Não existe outra ópera que seja tão ambígua: é um conto mágico ou uma peça de mistério? Uma alegoria sobre o bem e o mal ou uma parábola do verdadeiro amor?". A partir de sua primeira apresentação, em 30 de setembro de 1791 (dois meses antes da morte do autor), ficava a dúvida: não se tratava apenas de uma obra fantástica. Suas implicações subliminares eram cada vez mais numerosas e evidentes.


UMA FÁBULA?
Com a morte do imperador José II, Mozart não receberia mais encomendas de óperas para a corte de Viena. O seu abandono ficaria ainda mais evidente com a demissão, por ordem real, de seu libretista italiano, Lorenzo da Ponte, colaborador em três obras. A sorte do músico só mudaria com Emanuel Schikaneder, ator, empresário e libretista. Ele havia assumido a direção do Theater Auf Der Wieden (um teatrinho de feira, espécie de percursor dos "nicklodeons") e ofereceu a idéia de Die Zauberflöte - adaptação livre de um conto de Wieland, para uma platéia mais suburbana. Para esse público menos classudo, a história parecia uma fábula sobre o amor, onde tudo está bem quando acaba bem, e dá certo quando o casal que se ama trabalha junto na superação das dificuldades impostas pela vida. Tamino é um príncipe egípcio e Pamina é filha da Rainha da Noite. A história se passa no Egito, no período de Ramsés I. Tamino é perseguido por uma cobra, desmaia e é salvo por três damas da noite, ao mesmo tempo em que chega um caçador de pássaros, falastrão e mentiroso, Papageno, que conta ter matado a tal cobra. As damas ouvem a deslavada mentira e o punem por isso.

Em seguida, elas revelam ao príncipe que Pamina foi raptada pelo mago Sarastro. A rainha então roga a Tamino que vá salvá-la. Este recebe dela, pelas mãos das três damas, uma flauta mágica. Ao ser tocada, a flauta pode salvá-lo de todos os perigos. Então acontece a mudança no plano dramático:

na verdade, eles descobrem que o obscuro reino do sumo-sacerdote é uma comunidade sábia, dirigida por homens sábios e de grande virtude, e que o rapto foi para salvar a jovem das maldades de sua mãe. No fim do primeiro ato, Papageno e Tamino aceitam passar por um ritual de iniciação. O passarinheiro, um rapaz de vida simples e que se resumia a tomar um cálice de vinho e encontrar uma namorada, com menos coragem, desiste das provas em favor do príncipe. Este, acompanhado de Pamina, vence os desafios, com o auxílio da flauta mágica. No fim, Papageno encontra uma alma gêmea - Papagena - e juntos entoam um dueto doce e memorável. Se Sarastro era bom, a verdadeira vilã é a Rainha da Noite (cuja antológica ária de apresentação ficou conhecida na propaganda da Chevrolet, na voz de Édson Cordeiro).

Segundo o historiador Luiz Roberto Lopez, professor de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), tanto a conclusão da Flauta Mágica quanto a diferença entre a Rainha da Noite e Sarastro mostravam as intenções de Mozart em exaltar o triunfo da fraternidade sobre a intolerância e da luz sobre as trevas - essa é, mais ou menos, a idéia principal. E o "orientalismo" da peça, por sua vez, animou Schikaneder, que previu casa cheia durante as apresentações, cuja assistência tomava gosto por esse tipo de novela fantástica. Contudo, segundo Roberto Lopez, a Zauberflöte é um desaguadouro das diversas tendências ideológicas e artísticas da segunda metade do século XVIII. "Nela encontramos o amor à natureza, a canção popular, o lirismo romântico, o humor ingênuo, a lição moral, o elevado humanismo e a retórica iluminista", diz Lopez. O historiador observa também que o verniz orientalista do enredo foi um dos recursos que Mozart aludiu para se referir ao que seria o elemento principal no libreto da ópera: o vínculo do compositor com a Maçonaria.

SIMBOLISMOS
Para os estudiosos, a primeira pista apareceu na confecção do primeiro libreto: uma página de rosto foi desenhada por um gravador que era conhecido membro da maçonaria, Ignaz Alberti. Para os não iniciados, soava como uma gravura de uma escavação arqueológica no Egito, devido ao cúmulo de elementos maçônicos contidos na ilustração. Como se sabe, Mozart pertenceu à Maçonaria austríaca, assim como o seu colega Joseph Haydn, além do próprio Emanuel Schikaneder. Porém, ao contrário das lojas francesas, este grupo não

tinha qualquer intenção revolucionária, a não ser a constituição de uma comunidade afeita a discutir concepções genéricas muito bem comportadas. Mesmo que essas lojas fossem bastante "moderadas", na terra de Mozart, devido aos eventos de 1789, as agremiações maçônicas passaram a ser perseguidas e fechadas, entre 1794 e 1796. Assim, quando José II morreu, a Maçonaria estava em seus estertores na Áustria.

Com a pena da sutileza, o compositor da "Eine Kleine Nachtmusik" desenhou no pentagrama e no palco um simbolismo diáfano do que era a Maçonaria da sua época, com o objetivo de escapar da censura. Deste modo, todo o ritual passava desapercebido ao público comum, mas não aos iniciados.

O fator mais recorrente é a utilização do número três em vários momentos da ópera. A abertura (em mi bemol maior) comporta dois movimentos: um adágio-allegro-fugatto. São três acordes ascendentes que servem de prelúdio a uma melodia que se insurge de maneira indecisa, quando é quebrada pela explosão do allegro. Três bemóis na clave principal (mi bemol maior) na Ouverture, três meninos, três damas. Outra pista é a cena da Cruz Soberana com os soldados: a introdução orquestral desta cena possui dezoito grupos de notas. Sarastro aparece pela primeira vez na cena dezoito do primeiro ato(!). No começo do último, o mago e seus sacerdotes entram em cena: são dezoito sacerdotes e a primeira parte do tema que eles interpretam, o coro "O Isis Und Osiris", dura dezoito compassos.

Explica-se: já que o número dezoito é múltiplo de três, três é na verdade o tal número recorrente.

SUBVERSÃO
De acordo com Luiz Roberto Lopez, junto coma tese "maçônica" de Die Zauberflöte, existe uma outra, que joga-a para um outro lado. Um outro autor, Claudio Casino, chama a atenção que Ignaz Von Born havia deixado a Maçonaria em 1786 para ingressar numa outra sociedade secreta, esta situada mais à "esquerda" dos maçons, chamada Ordem dos Iluminados. Os Iluminados teria se utilizado dos elementos típicos da Maçonaria com a intenção de subvertê-la. Consta que eram adeptos do materialismo ateu e defendiam uma sociedade sem classes. Revolucionários, a nova Ordem atacava os maçons,

acusando-os de ociosos e obscurantistas. Pela ótica de Casino, a identificação de Von Born com Sarastro teria outra explicação: seu oponente, a Rainha da Noite, não representava a Imperatriz Maria Teresa (que andava às turras com a Ordem do Templo), mas sim a Maçonaria "obscurantista". Por outro lado, nessa mesma tese, a cena do ritual de iniciação de Tamino e Pamina no Templo de Ísis não representaria a sua iniciação na Maçonaria, mas sim o ingresso desta para a Ordem dos Iluminados.

- Sob a aparência de uma fábula maçônica, Mozart teria feito uma exposição dos rituais dos "Iluminados" - revela Lopez.

Desta forma, a hipótese de Casino terminou questionando quase veementemente àqueles que achavam que a tese "maçom" da Flauta Mágica fosse irrefutável. Pelo menos, o que é seguro é que o compositor faz uso corrente de simbologia da Ordem à qual pertencia. Mesmo sendo uma idéia sedutora - assevera o historiador - a teoria de exaltar uma comunidade mais "radical" como a dos Iluminados não se confirmaria de todo. Afinal, a dualidade luz/trevas, tão presente na ópera, era elemento comum tanto entre os maçons quanto os Iluminados. Mais do que isso, ela não deixava de representar o ideal daquela época, como representação do racionalismo, o mote principal de todo o ideário iluminista: "o mais certo é que Mozart foi, antes de tudo, coerente com a sua própria concepção humanista de vida", entende Lopez. "As diferenças de posicionamento entre as duas ordens, por mais importantes que parecessem, seriam sutilezas políticas para as intenções do compositor".

"ELE É UM HOMEM!"
Correndo por fora deste embate ideológico, Luiz Roberto Lopez salienta a questão de idéias que A Flauta Mágica expõe e defende, com clara finalidade didática e moralizadora, "bem ao gosto dos Iluministas". Nesse sentido, é nítido o conteúdo maçônico do trinômio "virtude-prudência-sabedoria" e alusões à elementos "puros" como Bondade e à Fraternidade. O historiador salienta um trecho falado no segundo ato, onde Sarastro e os demais sacerdotes discutem a admissão de Tamino na Ordem. Um deles diz, referindo-se ao herói: "ele é um príncipe", ao que Sarastro retruca; "mais do que isso, ele é um homem" ("Er ish Mensch!"). Mais que um príncipe, um homem. Ou seja, antes de qualquer título honorífico, ele é como um de nós, e é um ser humano. Ele não seria maior do que todos pela realeza, mas nivelado pela sua condição humana. Em Zauberflöte, personagens que simbolizam traição (como o mouro Monostatos), opressão e dissimulação (a Rainha da Noite) são fadados ao fracasso e à morte.

A rainha, aliás, ao ser subentendida como a corte decadente, de acordo com Lopez, seria mais uma construção feita como desagravo e testemunho do valor de uma "corporação ameaçada" e representação de intolerância daqueles tempos. Ao contrário, a comunidade de Sarastro seriam os novos tempos, o reino da benevolência. "Esta é a verdade que, inicialmente oculta ao público, ao ser contada, surge como uma revelação". Apesar desse embate, não existe violência n'A Flauta Mágica. Mesmo a "malvadeza" da Rainha da Noite é atenuada pela beleza e a coloratura de duas principais árias e o carisma dos personagens consegue subverter os "deslizes" do libreto de Schikaneder, como a "incoerência" de Tamino, que, antes, covarde fugitivo de uma serpente, vira um guerreiro audaz. Já Papageno, o mais emblemático da ópera, é dono de uma singela virtude que o assemelha ao mito do "bom selvícola", de Jean-Jaques Rousseau. É o homem em seu estado natural, dócil e inocente, em contato com a natureza e auto-suficiente em seus simples prazeres.

A Flauta Mágica, a derradeira de Wolfgang Amadeus Mozart, é certamente a mais universal de todas. Não é a rede de intrigas de Cosi fan Tutte, não é uma eficiente bufonaria com toques de comédia grega, como Le Nozze de Fígaro, não é a velada defesa do individualismo "burguês" que se ensaiava naquele fim de século, como em Don Giovanni. A Flauta Mágica fala de grandes sentimentos: "é a ópera dos elevados sentimentos humanos, traduzidos num clima de beleza e de beatitude", destaca Lopez. "É a ópera dos altos ideais se impondo ao obscurantismo, é o evangelho de uma religião muito particular de Mozart, impregnada do humanismo confiante e da felicidade como aurora promissora no horizonte, proclamados no pensamento da Idade das Luzes", conclui.

Para quem se interessar, é possível ouvir boas versões de A Flauta Mágica em CD nas lojas. Infelizmente, os títulos de clássicos em edições brasileiras rareiam muito. Para quem se preocupa com a qualidade das interpretações, desde os solistas até a orquestra, por exemplo, na verdade, não existe uma gravação perfeita da obra. Existem mais algumas consagradas mais pelos seus respectivos regentes ou por seus atores, mas nem sempre uma edição conhecida seja a melhor. Em se tratando de música clássica, é fácil incorrer no equívoco de comprar a peça porque o intérprete é famoso. A edição da Filarmônica de Berlim (regência de Herbert Von Karajan) é bastante difundida, mas tem interpretações abaixo da média geral. Na verdade, serve como registro histórico de uma época da "Berliner". Existem versões que "pecam" menos e podem ser recomendadas, mas são imperfeitas no todo. Entre elas há o DVD de Araiza/Serra/Battle/Holl/Levine (Deutsch Gramoffon Gesselchaft) É uma gravação com excelente resultado, em vários aspectos. Em CD, a gravação de melhor resultado final é a do maestro Otto Klemperer com a Philharmonia Chorus   Orchestra, com Nicolai Gedda como Tamino. Edição EMI: "Great Recordings of the Century" (CD duplo).

FONTE: http://www.glesp.org.br

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