*Por Pedro Vals Feu Rosa
Pedro Vals Feu Rosa |
Há
um ano era instalada, no Tribunal de Justiça, a Comissão de Combate à Tortura.
Iniciativa inédita no Brasil, nos moldes como concebida, funciona com a
participação do Poder Judiciário, do Poder Executivo, do Ministério Público, da
OAB, do Conselho Estadual de Direitos Humanos e da Defensoria Pública.
Esta
Comissão tem sido atuante. Ao longo de seu primeiro ano de funcionamento não
foram poucas as inspeções feitas em presídios - seja preventivamente, seja por
conta de denúncias recebidas.
Mas
nós fomos além. Em parceria com o próprio Sindicato dos Agentes do Sistema
Penitenciário do Espírito Santo implantamos outra iniciativa inédita em nível
nacional, e talvez mesmo mundial: o “torturômetro”.
Trata-se
de um instrumento que permite lançar algumas luzes sobre a realidade, ao tornar
público o número de denúncias envolvendo tortura - e realço apenas serem
admitidas aquelas revestidas de um mínimo de plausibilidade. Leia mais
Todo
este esforço conjunto, de Poderes e Instituições, não buscou, em momento algum,
“passar a mão na cabeça de bandidos” - apenas procuramos banir de nossas
prisões a prática covarde e bárbara da tortura.
O
nosso credo é o de que quem comete crimes tem que ser punido. Que fique preso.
Que seja submetido à disciplina das prisões. Eis aí o óbvio.
Mas
daí a amontoar presos sobre um piso molhado para submetê-los a choques
elétricos vai longa distância - a mesma que separa a civilização da barbárie.
Daí
a desnudar e colocar sobre o sol 52 detentos, assentando-os sobre cimento
quente até que suas nádegas fiquem em “carne viva”, vai longa distância - a
mesma que separa os mais básicos sentimentos cristãos da crueldade impiedosa.
Daí
a retirar dezenas de presos de suas celas no meio da madrugada para forçá-los,
nus, a um sinistro “balé de agachamentos” até que suas articulações sejam
gravemente danificadas, causando dor intensa, vai, sim, longa distância - a
mesma que separa um Estado ou um País digno de respeito do descrédito perante a
comunidade mundial.
Somos,
e fique isto muito claro, a favor da punição para criminosos e da disciplina no
interior dos presídios. Mas igualmente somos, e seremos sempre, inimigos
ferrenhos da tortura.
Ser
contra a tortura, registramos, não é apenas uma questão espiritual - é também
de inteligência! Afinal, não existe no Brasil a prisão perpétua - ou seja, mais
dia menos dia os torturados retornarão ao nosso convívio, às mesmas ruas pelas
quais passam nossas famílias.
Ser
contra a tortura é pensar no Brasil, que com tanto esforço tem buscado um
importantíssimo assento permanente no Conselho de Segurança da Organização das
Nações Unidas, enquanto sofre a vergonha de responder a procedimentos
internacionais por conta de desrespeitos aos direitos humanos.
Ser
contra a tortura é defender o orgulho de ser brasileiro, de ser reconhecido
mundialmente como parte de um povo afável, cristão, pacífico e ordeiro - e não
como membro de uma malta primitiva e violenta.
Foram,
e são, estes os sentimentos que nos impulsionaram nesta caminhada. Que nos
deram forças ao longo de todo o ano de 2012 para, penosamente, ir de presídio
em presídio, de denúncia em denúncia, buscando a racionalização do ambiente
penitenciário.
Mas
eis que, chegado o momento do balanço anual, encontramos 356 denúncias com
fundamentação sólida - algumas delas filmadas ou fotografadas, de conteúdo tão
chocante como certo. Isto dá quase uma por dia! Estamos, em verdade, “enxugando
gelo”!
As
vítimas desta barbárie foram centenas, incluindo até gestantes! Mulheres
grávidas, eis aí o arremate do horror!
Ao
longo de todo um ano, o máximo que conseguimos foi um período de 34 dias sem
denúncias. E iniciamos 2013 com a cena horrenda de 52 seres humanos submetidos
a práticas de tortura realizadas de forma quase que pública, à luz do dia e
dentro de uma região metropolitana.
Mais
grave o quadro quando a tortura ficou oculta dos olhos da lei - apenas veio a
público por conta de denúncia apresentada por um agente penitenciário perante o
Tribunal de Justiça.
Choca
constatar que as pungentes fotografias de queimaduras sérias e profundas
retratavam ferimentos produzidos uma semana antes!
Não
se veja, assim, neste ato de barbarismo praticado à luz do dia e ao ar livre
contra 52 detentos, uma agressão apenas a eles. Jamais. Há aí um desrespeito
frontal ao Governador do Estado, ao Presidente do Tribunal de Justiça, ao
Procurador Geral de Justiça, ao Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, ao
Defensor Público Geral e ao Presidente do Conselho Estadual dos Direitos
Humanos.
Veja-se
aí, igualmente, um desrespeito à Sociedade - que não merece receber de volta
das prisões seres revoltados por terem sido torturados barbaramente - e, o que
é pior, de forma seletiva, dado nunca ter visto um “poderoso” ou um “filhinho
de papai” sofrer violências de tal quilate, reservadas sempre aos miseráveis.
Distinga-se,
finalmente, o frontal desprezo à imprensa, que, ao longo de 2012, veiculou
repetidas matérias sobre este assunto - algumas delas em âmbito nacional, para
desdouro do Espírito Santo e do Brasil.
Eis
aí a realidade sombria. Estes torturadores desprezam as autoridades, a
imprensa, as instituições e a população. Desprezam seus próprios colegas, que
ao longo de todo o ano foram ao Tribunal de Justiça denunciar a tortura e apontar
ser esta fruto de alguns poucos. Desprezam a tudo e a todos, gargalhando uma
impunidade ultrajante.
É,
assim, com imensa tristeza que venho a público registrar que a tortura segue,
firme e forte, no Estado do Espírito Santo. Ela é praticada às escâncaras, à
luz do dia. Reconheço, com imensa decepção, que o Estado do Espírito Santo não
conseguiu vencê-la, ou talvez nem mesmo reduzi-la.
Anuncio,
assim, que a partir do dia 13 de janeiro começarão a ser disponibilizados para
a população, na íntegra, os procedimentos relativos aos casos de tortura.
Buscamos, com tal prática, lançar mais luzes sobre as sinistras masmorras em
que se transformaram nossas prisões.
Paralelamente,
pediremos a instituições e organizações de âmbito nacional que passem a
acompanhar cada uma destas denúncias - e assim porque o combate à tortura é
tema de interesse nacional, dado estar o Brasil comprometido perante organismos
internacionais.
Em
um passado recente, diante do fracasso das instituições no que toca à
civilidade do sistema prisional, o derradeiro caminho encontrado foi aquele que
leva à Organização das Nações Unidas.
Confiamos
em que nunca mais seja esta a última opção - afinal, não somos um povo bárbaro
e habitamos um país que se julga temente a Deus.
*Pedro
Valls Feu Rosa
Presidente
do Tribunal de Justiça do Espírito Santo
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