Da Redação
Em outubro de 1925, a cidade de Florença viveu
uma das páginas mais sombrias da sua história moderna — um episódio que a
memória coletiva italiana batizou de “A Noite de São Bartolomeu”, evocando a
brutalidade do massacre ocorrido na França em 1572. Entre os dias 3 e 4 de
outubro de 1925, um comando de squadristas fascistas espalhou o terror pelas
ruas da capital toscana, assassinando Giovanni Becciolini, Gustavo Console, Gaetano
Pilati e quatro operários cujos nomes permaneceram desconhecidos. Um século
depois, Florença e o Grande Oriente da Itália renderam homenagem à memória
desses mártires da liberdade, vítimas do autoritarismo que se consolidava sob
Benito Mussolini.
A
Memória dos Mártires
As comemorações do centenário tiveram início no
Cemitério Monumental de Trespiano, onde repousam os restos mortais de Giovanni
Becciolini, maçom e símbolo da resistência civil ao fascismo. Diante de sua
tumba, realizaram-se cerimônias com a presença de autoridades como Cosimo
Guccione, presidente do Conselho Comunal, Valdo Spini, presidente da Fundação
Fratelli Rosselli, e o Grão-Mestre do Grande Oriente da Itália, Stefano Bisi.
Na mesma noite, o jornal digital Nove da
Firenze organizou um itinerário da memória pelos locais dos assassinatos: a
lápide de Becciolini na Via dell’Ariento, a casa de Pilati na Via Dandolo e o
local da morte de Console na Via Timoteo Bertelli. Cada parada foi marcada por
silêncio, reflexão e compromisso com a verdade histórica — um tributo à coragem
de quem ousou enfrentar o fascismo e pagou com a vida o preço da liberdade.
A
Repressão à Liberdade de Imprensa
No dia seguinte, 4 de outubro, o Gabinete
Vieusseux e a Fundação dos Jornalistas da Toscana promoveram um encontro sobre “A
repressão fascista da liberdade de imprensa”. Participaram do evento renomados
estudiosos e jornalistas, como Nicola Novelli, Cosimo Ceccuti, Stefano Bisi, Giancarlo
Tartaglia, Marcello Mancini e Valdo Spini.
Foi lembrado que, desde 7 de julho de 1924, um
decreto havia concedido aos prefeitos o poder de censurar, suspender ou fechar
jornais que publicassem notícias consideradas “falsas” ou “tendenciosas”. O
controle da imprensa foi um dos primeiros instrumentos do regime para sufocar o
dissenso. Jornalistas como Piero Gobetti e Luigi Albertini resistiram, mas
acabaram sendo silenciados por ameaças, exílios e violências.
A lembrança de figuras quase esquecidas, como Aldemiro
Campodonico, diretor de Il Nuovo Giornale, recuperou o testemunho de uma
geração que, mesmo diante do terror, manteve acesa a chama da dignidade.
“Non Mollare”: A Voz que Não se Calou
Entre as vozes insurgentes, destacou-se o
jornal clandestino “Non Mollare” (“Não Desista”), fundado em Florença por Nello
e Carlo Rosselli, Gaetano Salvemini, Ernesto Rossi, Tommaso Ramorino e Nello
Traquandi.
A publicação, nascida após o assassinato de Giacomo
Matteotti, tornou-se símbolo da resistência intelectual e moral ao fascismo.
Não se ligava a nenhum partido, mas defendia um princípio que unia socialistas
e liberais democráticos: a liberdade de pensamento como essência da dignidade
humana.
Segundo Valdo Spini, o espírito do Non Mollare
sobreviveu nas ideias que alimentaram o movimento Giustizia e Libertà e, mais
tarde, o Partido de Ação, pilares do antifascismo e da reconstrução democrática
italiana.
A
“Noite de São Bartolomeu”
No centro das recordações, o Grão-Mestre Stefano
Bisi reconstituiu a cronologia daquela noite terrível. Em 26 de setembro de
1925, o jornal fascista Battaglie Fasciste publicara um manifesto conclamando
abertamente ao ataque contra os maçons:
“É preciso atingir
os maçons em suas pessoas, seus bens, seus interesses [...]. Todos os meios são
válidos: do cacete ao revólver, da quebra de vidraças ao fogo purificador.”
Poucos dias depois, o horror tomou forma. Os squadristas
invadiram a casa do maçom Napoleone Bandinelli para roubar os registros das
Lojas. Giovanni Becciolini, seu irmão de ofício, tentou defendê-lo e foi
capturado. Arrastado até o mercado próximo, foi alvejado por 63 tiros e, ainda
vivo, levado às “Fontanelle”, onde seus algozes zombaram dele: “Depois de tanto
fogo, que goze um pouco de água.”
Na mesma noite, o advogado e maçom Gustavo
Console, colaborador do jornal socialista Avanti!, foi assassinado em seu
escritório — local que havia sediado o último congresso socialista clandestino
e de onde partira a distribuição do Non Mollare.
Outro mártir, Gaetano Pilati, ex-deputado e
mutilado de guerra, foi baleado dentro de sua casa pelo grupo fascista “La
Disperata”. Morreu dias depois, em 7 de outubro. Nenhum dos assassinos foi
punido: o processo aberto em 1927 terminou com absolvições, apesar dos
testemunhos da viúva de Pilati.
A
Imprensa e o Controle do Estado
Os estudiosos Giancarlo Tartaglia e Marcello
Mancini destacaram como o fascismo compreendeu o poder estratégico da
comunicação. Mussolini, ele próprio ex-jornalista, considerava a imprensa “o
quarto poder ao serviço do Estado”.
A censura oficial e a autocensura cotidiana
transformaram o jornalismo em instrumento de propaganda. Nasceram meios
controlados pelo regime, como a Rádio Audizioni Italiane (RAI) e o Istituto
Luce, que difundiam a narrativa fascista em uma Itália ainda em grande parte
analfabeta.
A repressão atingiu não apenas as redações, mas
também as associações de classe. A Federação Nacional da Imprensa foi
dissolvida, substituída por um sindicato fascista. Só em 26 de julho de 1943,
após a queda de Mussolini, o órgão foi restabelecido, abrindo caminho para o artigo
21 da Constituição Italiana, que garante a liberdade de expressão e de
imprensa.
Florença, Cidade da Memória e da Resistência
O centenário foi também lembrado em sessão
solene do Conselho Comunal de Florença, no dia 6 de outubro de 2025, com a
reedição dos Atos do Conselho de 1975, que haviam marcado os cinquenta anos da
tragédia. Durante a cerimônia, com leitura de textos teatrais e intervenções de
Valdo Spini e outros conselheiros, reafirmou-se que a luta pela liberdade — de
imprensa, de pensamento e de consciência — é um compromisso contínuo, não uma
lembrança distante.
Legado
A “Noite de São Bartolomeu de 1925” permanece
como um símbolo de resistência moral contra o totalitarismo. Cem anos depois,
Florença recorda seus mártires não apenas com dor, mas com orgulho: Becciolini,
Console e Pilati representam a chama que não se apaga — a defesa da liberdade
humana diante da tirania.
“As ditaduras fecham
os corações”, escreve Stefano Bisi em seu livro.
Mas a memória dos que resistiram — maçons,
socialistas, liberais e simples cidadãos — mantém o coração da liberdade
aberto, pulsando, e vigilante.
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