Por
Carlos Orsi (*)
Existem
vários mitos divertidos sobre a origem da maçonaria, alguns que mencionam a
construção das pirâmides do Egito, outros a do Templo de Salomão (o original de
Jerusalém, não a imitação kitsch em São Paulo). O que a história ensina, no
entanto, é que a ordem emergiu a partir de algumas características particulares
das guildas de artesãos que trabalhavam com pedras entre o fim da Idade Média e
o início da Moderna.
No
mundo medieval, profissões que requeriam treinamento e habilidades especiais –
fabricar móveis, por exemplo, ou forjar metal – tendiam a se organizar em
grupos chamados guildas, que faziam um papel semelhante ao que hoje é
desempenhado por sindicatos, conselhos de classe e escolas técnicas: defender
os interesses da categoria, manter um código de ética, fofocar sobre os colegas
e instruir a próxima geração.
Enquanto
a maioria das guildas tinha base geográfica fixa e os membros se conheciam
todos entre si, os artesãos que trabalhavam pedra para construção – os
pedreiros, enfim – eram itinerantes: grandes obras (palácios, catedrais) podiam
surgir em toda e qualquer parte, e era improvável que uma mesma cidade ou
região se lançasse numa longa sequência ininterrupta de grandes construções, o
que forçava os maçons a se deslocar em busca de emprego cada vez que uma obra
terminava. Pedreiros viajavam muito a trabalho, e sempre que encontravam
serviço podiam também encontrar pedreiros de outras partes da Europa.
Com
isso, em vez de bases fixas, a guilda desenvolveu um sistema de redes de
“lojas” temporárias, anexas aos canteiros de obra; e um sistema de sinais de
identificação (gestos, apertos de mão) que permitia a pedreiros que nunca
tinham se encontrado antes reconhecerem-se entre si, identificarem-se como
colegas de profissão (“irmãos”) e aferir o grau de experiência e perícia uns
dos outros. Com o passar dos séculos, a rede se abriu para membros de outras
profissões e absorveu um certo esoterismo de opereta (o grande charlatão
“Conde” Cagliostro abriu diversas lojas maçônicas no século 18).
O
que a maçonaria é, então? Uma rede de relacionamentos, confiança mútua e (por
tabela) influência, dotada de uma mitologia própria e de um sistema peculiar de
credenciamento. O que seus membros fazem com os relacionamentos, a confiança e
a influência que as credenciais e o acesso à rede trazem varia enormemente com
o tempo e o lugar.
Já houve lojas maçônicas envolvidas em movimentos políticos progressistas, e também reacionários; pelo menos uma, a italiana P2, tornou-se infame por reunir fascistas e mafiosos. Muitas nunca foram mais do que clubes sociais ou grupos de estudo de temas esotéricos. Hoje em dia, no Brasil, é comum que pequenos empresários busquem filiação para ampliar a rede de contato de seus negócios e angariar clientela.
E o diabo com isso?
Por
não exigir nenhuma filiação político-religiosa específica de seus membros (em
geral, a ordem rejeita ateus, requerendo profissão de fé no “Grande Arquiteto
do Universo”, mas mesmo essa demanda é flexibilizada em alguns países) e
oferecer um ambiente seguro para debates de todo tipo, nos séculos 18 e 19 a
maçonaria tornou-se um ímã para livres-pensadores, ocultistas, espiritistas e
defensores de causas “radicais”, como a ampla liberdade religiosa e a separação
entre Igreja e Estado.
Na
época, a Igreja (especificamente, a Católica) não gostou nada da ideia e uma
série de condenações papais foram emitidas entre 1738 e 1884, culminando na
encíclica Gênero Humano, de Leão XIII (1810-1903), que basicamente divide a
Humanidade em dois partidos, o de Deus e o do diabo, e põe os maçons (junto, é
bom notar, com todos que defendem liberdade religiosa e Estado laico) no
exército do coisa-ruim.
Entre
as atrocidades atribuídas pelo pontífice à “seita dos maçons” estava a de
esforçarem-se “para que o ofício de ensinar e a autoridade da Igreja tornem-se
sem valor no Estado civil; e por esta mesma razão eles declaram ao povo e
argumentam que a Igreja e o Estado devem ser completamente desunidos”. Oh! O
horror, o horror.
Se,
na encíclica, a imputação de satanismo é mais implícita e retórica do que uma
acusação concreta e direta, as palavras de Leão XIII deram a um dos grandes
canalhas do século 19 a inspiração para lançar uma das mais fantásticas fraudes
da história.
O motivo, expresso mais de uma década depois do início do embuste, teria sido expor a hierarquia católica ao ridículo e denunciar fiéis, padres, bispos e cardeais de linha conservadora como idiotas, imbecis crédulos e desprovidos de senso crítico; o efeito, no entanto, foi lançar um miasma de mentira e preconceito que perdura até hoje.
O Paládio Novo e Reformado
O
criador da farsa foi o jornalista, pornógrafo (autor de um panfleto com o
título lúbrico “Os Amores Secretos de Pio IX”, plagiário (foi expulso da
maçonaria por piratear textos) e charlatão (teve de fugir da Suíça por vender
“bombons de serralho”, isto é, pílulas supostamente afrodisíacas) francês
Gabriel Jogan-Pagès (1854-1907), mais conhecido pelo pseudônimo Léo Taxil.
Jogan-Pagès,
ou Taxil, havia construído para si uma reputação de ferrenho opositor da Igreja
Católica – como a autoria de um texto pornográfico sobre o papa Pio IX
(1792-1878) deixa mais do que claro. Quando, em 1885, ele anunciou sua
conversão ao catolicismo, o mundo da guerra cultural que então se travava na
França entre laicistas e católicos tremeu em seu eixo. O próprio Leão XIII o
recebeu em audiência.
Após
a aparente conversão, Taxil passou a publicar textos, cada vez mais exagerados
e inacreditáveis, sobre o que “realmente acontece” na maçonaria. Essas obras
tornaram-se best-sellers entre os católicos conservadores, e culminaram no
estupidamente absurdo “O Demônio no Século 19”, escrito por Taxil em parceria
com dois cúmplices, um dos quais depois se definiu como o “Júlio Verne da
burrice dos católicos”.
Como
o historiador David Allen Harvey nota em seu artigo “Lucifer in the City of
Light”, Taxil e seus coautores incluíram tantos absurdos – por exemplo, a
aparição de um jacaré voador tocando piano durante uma sessão espírita – “que
só fazem sentido no contexto de uma disputa entre fraudadores rivais” para ver
quem conseguia inventar a atrocidade maior.
Enormidades
assim, no entanto, passaram batido pelo senso crítico dos principais nomes da
Igreja Católica na França e na Itália, incluindo o Vaticano. Bispos americanos
e alemães ofereceram alertas, mas não foram ouvidos. Para os soldados da guerra
cultural travada na época nos países latinos – onde a Igreja se sentia acuada,
perdendo a posição de religião oficial do Estado e os privilégios com que se
havia acostumado nos séculos anteriores – a narrativa oferecida por Taxil era
boa demais para não ser verdade.
E
que narrativa era essa? Em linhas gerais: a maçonaria, na verdade, não passava
de um bando de inocentes úteis que, sem saber, serviam aos propósitos de uma
organização nefanda e ainda mais secreta, o Paládio Novo e Reformado, baseada
no sul dos Estados Unidos. Qual a missão desse Paládio? Destruir a Igreja
Católica; preservar e perpetuar a linhagem encarregada de, no futuro, trazer ao
mundo o Anticristo.
Ao
apontar como mestres do Paládio maçons ligados a igrejas protestantes (nos EUA)
ou judeus (na Europa), Taxil torna seu prato ainda mais apetitoso, temperando-o
de acordo com os preconceitos mais virulentos da época. Um arcebispo, Léo
Meurin (1825-1895), inspirado pelas “revelações” de Taxil, escreveu “Maçonaria:
a Sinagoga de Satã”, fundindo numa só frase infeliz o sentimento antimaçônico e
o antissemitismo.
Entre
1885 e 1897, Taxil e colegas produziram não apenas textos teóricos, mas também
intricadas redes de melodrama, incluindo a história rocambolesca da fuga de
Diana Vaughan, virgem do Paládio consagrada ao demônio Asmodeu, que depois de
receber uma visão de Joana D’Arc decidiu romper com a ordem e expor seus
segredos.
Os
perigos e sofrimentos de Diana emocionaram os franceses como as reviravoltas do
destino de uma mocinha de telenovela emocionam o público de hoje. Um jornal
católico, Le Croix, editorializou sobre o poder da Graça Divina,
capaz de acolher até mesmo uma ovelha tão perdida quanto a pobre Diana. Por
meio de um de seus cardeais, Leão XIII transmitiu à pobre virgem uma “bênção
muito especial”.
Por fim, em 1897, Gabriel Jogan-Pagès, na cerimônia pública em que deveria, finalmente, apresentar Diana Vaughan em carne e osso, confessou que tudo não havia passado de uma fraude. “Paladismo, minha maior criação, existe apenas no papel e em alguns milhares de mentes”, declarou. As fotos de Diana Vaughan que tinham sido publicadas eram, na verdade, da secretária de Léo Taxil.
Consequências
Em
maio de 1906, a revista National Magazine, dos Estados Unidos,
publicou as seguintes declarações atribuídas a Léo Taxil:
“Os
crimes que atribuí aos maçons eram tão grotescos, tão impossíveis, tão
grosseiramente exagerados que achei que todos logo iriam perceber a piada e me
dar crédito por criar um novo tipo de humor. Mas meus leitores não viam isso;
aceitavam minhas fábulas como verdade absoluta, e quanto mais eu mentia pra
mostrar que estava mentindo, mais eles se convenciam de que eu era um exemplo
de veracidade”.
Taxil
depois admite que seguiu com a fraude por 12 anos porque viu uma ótima
oportunidade de ganhar dinheiro, e conclui que “não há limite para a burrice
humana”.
A
confissão de 1897, é claro, não pôs fim ao caso. Logo surgiram teorias de que
Léo Taxil havia sido ameaçado e forçado pelos paladistas a fazer uma retratação
falsa. Ficções narradas em “O Demônio no Século 19” e nas diversas “confissões”
de Diana Vaughan ainda eram citadas como fatos em publicações conservadoras
até, pelo menos, a década de 1930.
Mais
do que os “fatos” específicos – o jacaré voador, a serpente demoníaca que usava
a ponta da cauda para escrever profecias nas costas de virgens nuas –, no
entanto, perduram até hoje os fatos psicológicos e culturais criados pela
fraude: a associação imaginária entre maçonaria e satanismo, a ideia paranoica
de que a secularização do Estado e o afastamento entre autoridade eclesiástica
e autoridade civil são partes de um complô judaico-maçônico.
Para
citar um satirista muito mais talentoso que Taxil, e que vivera 200 anos antes:
em 1710, Jonathan Swift (1667-1745) escreveu num artigo que “a mentira voa, e a
verdade é coxa; dessa forma, quando os homens são desenganados, é tarde demais,
a piada acabou e o conto surtiu seu efeito”.
É
irônico que, no contexto brasileiro atual, a lorota do bicho-papão maçom, parte
de uma história que tinha, entre seus vilões, cristãos protestantes do sul dos
EUA, seja abraçada por cristãos neopentecostais, muitos deles herdeiros
teológicos das vítimas originais dessa difamação.
Há
inúmeros outros paralelos possíveis entre a fraude maçônica de Léo Taxil e o
mundo contemporâneo, delineados pelo clima de guerra cultural que domina as
duas épocas. Cegueira seletiva e bolhas ideológicas, por exemplo – muitos fãs
de Diana Vaughan diziam que, se a história dela era falsa, por que os maçons
não a desmentiam? A verdade é que desmentidos foram produzidos, inúmeros,
contundentes, mas os crentes fanáticos optaram por ignorá-los.
Outra lição importante é a de que mentiras sedutoras que circulam por algum tempo criam resiliência e sobrevivem a tudo, até mesmo à verdade, como o dito de Swift bem aponta. Nem a confissão de Taxil, nem a insistência de Taxil e dos co-conspiradores em, depois de tudo revelado, chamar seus leitores e crentes fiéis de idiotas e imbecis, foram capazes de destruir o mito elaborado e rebuscado ao longo de 12 anos. A verdade pode, quando muito, fazer o embuste recuar, perder terreno, refugiar-se nos cantos mal iluminados, à sombra dos espinheiros, nas trincas do piso – mas não o destrói. Ele continua lá, pronto para, dadas as condições adequadas, rastejar de volta à luz, empestear a atmosfera e reconquistar o território.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), ganhador do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)
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