O fato de a Maçonaria ser considerada uma
escola iniciática e filosófica, e apresentar-se de certa maneira envolta em uma
áurea espiritual, pode sem dúvida confundir alguns recém-iniciados. Pois um
Iniciado que não esteja preparado para receber toda a carga de ensinamentos
filosóficos pode facilmente se confundir, pois é pouco provável que conclua que
o objetivo principal e final da Ordem seja a obtenção da virtude pessoal
através de sua doutrina filosófica. Isso, imagina ele, é do foro da religião,
não da Maçonaria com sua “filosofia”. Para diluirmos essas dúvidas precisamos
regressar no tempo e compreender qual era o papel que a filosofia ocupava na
antiguidade.
Na Antiguidade Clássica das grandes
civilizações desenvolvidas, as coisas eram diferentes. A moralidade, a vida sã,
as relações do homem com os deuses — tudo isto era do foro do filósofo e não do
sacerdote. A religião romana, no tempo do Império, não tinha nada a ver com os
problemas morais. A sua função era simplesmente a da execução dos rituais que
assegurassem a proteção dos deuses por parte do Estado, ou evitassem os efeitos
do seu descontentamento. Era um sistema formal de cerimonias públicas
realizadas por funcionários do Estado, e não dava resposta às dúvidas e
dificuldades da alma humana.
Contudo, então, como agora, o homem sentia-se
perplexo perante as grandes questões que são preocupação de todos nós. Qual é a
composição deste universo que nos rodeia, e como é que ele apareceu? Teria sido
fruto de um acaso cego, ou da sábia Providência? Se os deuses existem, será que
eles se interessam pelas coisas dos mortais? Qual é a natureza do homem, e qual
o seu dever aqui, e o seu destino no além-túmulo? Não eram os sacerdotes, mas
os filósofos, que se reclamavam da competência para dar resposta a estas
questões.
É verdade que as suas respostas não eram
unânimes; havia sistemas filosóficos rivais, e cada um oferecia a sua própria
solução (como, aliás, as diferentes religiões do mundo ainda fazem hoje); mas
todos concordavam que só à filosofia pertencia o direito exclusivo de se
pronunciar com autoridade nos campos da metafísica, da teologia e da ética. Ela
era considerada competente para explicar a história da criação, definir os
poderes invisíveis por detrás da ordem do mundo, interpretar a natureza e o
sentido da existência humana, prescrever as regras para uma vida sã, e revelar
o futuro além-túmulo.
Assim, a filosofia ocupava o lugar que, nos
nossos dias, é ocupado pela religião, como instrutora e guia das almas em cada
estágio das suas peregrinações terrenas. Esta pretensão justifica-se
especialmente no caso do Estoicismo, que era marcado por um caráter mais
religioso do que qualquer outro sistema da Antiguidade. Citando a observação do
historiador irlandês Lecky que observou, “O Estoicismo tornou-se a religião das
classes instruídas”. Pois ela fornecia os princípios da virtude, dava cor à
mais nobre literatura da época, e guiava todos os desenvolvimentos do fervor
moral.
A Filosofia Estoica, o Estoicismo, que era o
sistema filosófico em que o Imperador Romano Marco Aurélio acreditava,
inclusive alguns autores o intitulam como o ultimo dos Estoicos, foi na sua
origem, um produto do pensamento do Médio Oriente. Tinha sido fundada uns
trezentos anos antes de Cristo por Zenão, oriundo de Citium (hoje Larnaka), em
Chipre, e recebeu o seu nome da “Stoa” ou colonata, em Atenas, que era uma
espécie de pórtico onde ele costumava dissertar. O seu principal discípulo foi
Cleanthes, que por sua vez foi continuado por Chrysipo; e os sucessivos
trabalhos destes três homens, que depois foram venerados como os “pais
fundadores“ do Estoicismo, resultaram na formação de um esquema de doutrina que
abarcava “todas as coisas divinas e humanas”.
As três palavras-chave do credo de Zenão eram
materialismo, monismo e mutação. Ou seja, ele considerava que tudo no universo,
mesmo o tempo, mesmo o pensamento, tem uma qualquer espécie de substância
corpórea (materialismo); que, em última análise, tudo se pode resumir a um
simples princípio unificador (monismo); e que tudo está em perpétuo processo de
mudança e a transformar-se em qualquer coisa diferente daquilo que antes era (mutação).
Estes três dogmas foram os alicerces sobre os
quais Zenão construiu toda a estrutura. A sua intransigente insistência nestes
princípios levou-o por vezes a expor ideias perfeitamente indefensáveis; mas,
nas mãos dos seus seguidores, as mais rígidas asserções do fundador foram
modificadas e suavizadas de maneira a torná-las aceitáveis para os pensadores
de espírito mais realista. Resumindo, podemos considerar que os estoicos foram
os primeiros a terem um conceito de humanidade semelhante ao da Maçonaria, pois
em seu modo de interpretar a vida consideravam as pessoas como parte de uma
mesma razão universal e isto levou à ideia de um direito universalmente válido,
inclusive para os escravos.
Os Estoicos eram monistas (negavam a oposição
entre espírito e matéria) e cosmopolitas. Eles interessavam-se pela convivência
em sociedade, por política e acreditavam que os processos naturais (morte, por
exemplo) eram regidos pelas leis da natureza e por isso o homem deveria aceitar
deu destino. Além do imperador romano Marco Aurélio, o filósofo e político
Cícero e Sêneca foram alguns dos grandes nomes que seguiram o estoicismo.
Quando o Estoicismo passou do Oriente para o
Ocidente e foi introduzido no mundo romano, assumiu um aspecto diferente. Foram
os elementos morais dos ensinamentos de Zenão que aqui despertaram mais
atenção, e o seu valor prático foi prontamente apreciado. Um código que era
humano, racional e moderado, um código que insistia num procedimento justo e
virtuoso, na autodisciplina, numa força moral inabalável e numa completa
libertação das tempestades da paixão adequava-se admiravelmente ao caráter
romano.
E consequentemente a reputação e influência
do Estoicismo aumentaram invariavelmente ao longo dos séculos que assistiram ao
declínio da república e ao nascimento do principado; e por altura da ascensão
de Marco Aurélio ao trono, tinha já atingido o ponto mais alto da sua
supremacia. As suas concepções e a sua terminologia eram agora familiares aos
homens e mulheres instruídos de todas as cidades importantes do Império os
Estoicos definiam a filosofia como “luta pela sabedoria”; e “sabedoria“, por
sua vez, era definida como “conhecimento das coisas divinas e humanas”.
Dividiam este conhecimento em três ramos: a Lógica, a Física e a Ética.
Uma vez que o primeiro requisito para a
procura da verdade é um pensamento claro e rigoroso, que, por sua vez, depende
de um uso preciso das palavras e um vocabulário de termos técnicos, o estudo
inicial era a Lógica. Depois vinha a investigação dos fenômenos naturais e das
leis da natureza. E esta estendia-se até à interpretação metafísica do
universo; pois, no esquema estoico, a Física incluía o estudo completo do Ser
na sua tripla manifestação: o próprio homem, o universo criado à sua volta, e
Deus.
Por fim, colocado no lugar mais elevado e
importante do sistema, vinha a Ética. Pois a verdadeira função da filosofia, o
ponto para o qual convergiam todas as questões e ao qual estavam subordinados
todos os ramos do conhecimento, era a própria conduta do homem, definida numa
palavra, “virtude“. Devamos comparar a filosofia a uma criatura vivente; os
ossos correspondem à Lógica, a carne à Ética, e a alma à Física. Bem semelhante
a busca que fazemos ao nos iniciarmos nesta Sublime Ordem, pois em nossas
sessões procuramos cavar masmorras aos vícios e erguemos templos à virtude.
Os três ramos de estudo do Estoicismo
A Lógica - No seu sistema, o conhecimento
começa com impressões, que são produzidas pelo impacto das coisas ou qualidades
sobre os sentidos. Depois fica para o poder da razão o julgamento daquilo que
os sentidos reportam: aceitá-lo como representação verdadeira da realidade
objetiva, ou rejeitá-lo como falso. Algumas impressões, como é evidente,
desencadeiam uma aceitação imediata e espontânea como, por exemplo, a noção
elementar de que o bem é benéfico e o mal prejudicial mas noutros casos a
aceitação só vem depois de ponderada reflexão; e pode variar entre uma
aprovação hesitante, tão fraca e vacilante que apenas constitui uma mera
“opinião”, e uma certeza categórica que só é produzida por uma chamada
“impressão arrebatadora”.
Contudo, mesmo uma impressão deste tipo pode
ser, de fato, imperfeita ou enganadora; e consequentemente a sua aceitação, por
muito segura que seja, pode ser errónea. Deve, portanto, ser, em seguida,
submetida ao escrutínio da razão, único poder soberano que pode emitir o
passaporte para a convicção. Por fim, esta convicção pessoal tem de ser
verificada por comparação com a experiência dos tempos e sabedorias passadas, e
confirmada pelo veredito geral da humanidade; e torna-se então conhecimento.
Ao explicar estes quatro estágios, Zenão
costumava ilustrar as impressões com os dedos da mão estendidos, a aceitação
com a mão fechada, a convicção com o punho cerrado, e o conhecimento com o
punho firmemente agarrado pela outra mão.
A Física - Os físicos estoicos ensinavam que
a fonte original do Ser em todas as suas formas é uma certa substância
omnipresente em todo o universo, que pode ser mais bem descrita como Espírito.
Contudo, como eles eram materialistas
consumados, consideravam este Espírito como consistindo de uma matéria real e
concreta, embora de uma espécie o mais fino e imperceptível que se possa
imaginar. Numa analogia com o mais subtil e vivo dos elementos conhecidos, e
que também alimenta a vida e o crescimento, conceberam a sua natureza essencial
como a do Fogo; mas um fogo tão rarefeito e etéreo que a palavra “calor” talvez
esteja mais próxima para a descrever do que qualquer coisa que possa sugerir
uma ideia de chama real.
Este Espírito-Fogo, que possuía consciência,
objetivo e vontade, era simultaneamente o criador e a matéria do universo;
tomava forma em inúmeras manifestações diferentes, dando assim às coisas a sua
substância e forma, e produzindo a partir de si próprio o mundo visível e tudo
o que dentro dele se encontra. De acordo com os variados contextos em que
reflete sobre isto, os principais disseminadores do sistema estoico dão-lhe
muitos nomes: quando falam da sua ação sobre o universo como um todo, pode
chamar-lhe Deus, Zeus, Natureza, Providência, Destino, Necessidade, ou Lei;
como um dos elementos materiais da natureza, é Fogo, ou Ar, ou Força; em
relação à constituição do próprio homem, torna-se Alma, Razão, Espírito, Sopro,
ou (na linguagem técnica da psicologia Estoica) “a Faculdade-Mestra”.
É importante lembrar que todas estas palavras
são meros termos para designar o mesmo Espírito-Fogo criador nos seus variados
aspectos. O Estoicismo era, portanto, um credo panteísta: isto é, considerava
que Deus está em toda a criação, mas não tem existência fora dela. E como tal,
está em direta oposição aos ensinamentos rivais do Epicurismo. Epicuro, ao
desenvolver as ideias de Demócrito, defendia que os únicos constituintes do
universo são átomos e espaço vazio.
A Ética - Os Estoicos ensinavam que o fim
principal do homem, e o seu mais elevado bem, é a felicidade. Na sua visão, a
felicidade era alcançada “vivendo de acordo com a Natureza”. Esta famosa frase
é muito facilmente mal interpretada pelo homem contemporâneo. Não significa
viver uma vida simples, ou a vida do homem natural; e muito menos viver da
maneira que muito bem queremos. Para apreender o seu significado, temos de nos
lembrar que a “Natureza” é uma das designações dos Estoicos para o fogo divino
que, além de criar todas as coisas, também as molda para os seus próprios fins.
Assim, ela incarna a ideia que hoje nós exprimimos pela palavra “evolução”.
Ela era a força que guiava e dirigia todos os
tipos de crescimento ou desenvolvimento em direção à perfeição final, como
buscamos na Maçonaria; e porque ela era também uma força viva, intencional e
inteligente, os próprios Estoicos também, por vezes, lhe chamavam Deus. “Viver
de acordo com a Natureza”, portanto, não era uma máxima muito diferente da obrigação
do Novo Testamento “Sede vós os seguidores de Deus”, e implicava um ideal
igualmente sublime e uma disciplina igualmente espinhosa. Se quisermos uma
definição mais precisa desta “Vida Natural”, os pensadores estoicos diziam que
ela consiste, para cada criatura, numa estrita conformidade com o princípio
essencial da constituição dessa mesma criatura.
No caso do homem, este princípio essencial é
a sua razão, que é parte da Razão universal. Desde que, portanto, ele siga esta
lei racional do seu ser, aproxima-se da felicidade; se se afasta dela, não a
alcançará. A Vida Natural é, de facto, a vida controlada pela razão; e tal vida
é descrita, em resumo, como “virtude”. É o significado de virtude que explica o
dogma estoico que diz que “a virtude é o único bem, e a felicidade consiste
exclusivamente na virtude”. A razão diz-nos claramente que algumas coisas estão
no nosso poder e outras não. Por exemplo, a saúde física, a riqueza, os amigos,
a morte, e outras deste tipo, estão fora do nosso controle; portanto, não podem
ser nem ajudas nem obstáculos à Vida Natural. São “coisas neutras”.
Mas a nossa própria vontade, os nossos
juízos, o nosso poder de aceitar o que é moralmente correto ou rejeitar ao
contrário tudo isto está no nosso próprio poder. Daí que nada exterior a nós
nos pode, por si só, afetar; só quando interiormente o aceitamos ou recusamos é
que ele nos pode beneficiar ou prejudicar. O prazer, em si próprio, não é um
bem, nem a dor, por si só, um mal; tornam-se uma ou outra coisa quando nós
assim as julgamos. É este o significado da insistência de Marco Aurélio em que
“a opinião é tudo”. E também explica a presteza do sábio, que tantas vezes
encontramos realçada nos seus ensinamentos, em “aceitar sem ressentimento tudo
que lhe possa acontecer”; um preceito que é claramente um dos esteios da sua
vida pessoal.
É este o princípio que está por detrás da
famosa “apatia”, ou “impassividade”, do sábio estoico ideal. Este, como
ensinavam os filósofos, experimentará todas as sensações e emoções que são comuns
ao homem, mas, porque se recusa a vê-las como males, não será afetado por elas.
Considerando-as como coisas exteriores e, portanto, neutras, ele fica seguro e
incólume. Consequentemente, como os Estoicos afirmavam (para grande
divertimento do poeta Epicurista Horácio), só o sábio é verdadeiro rei, rico,
apesar da sua pobreza, feliz, apesar do seu sofrimento físico, livre, mesmo se
escravo, sereno e auto-suficiente em todas as vicissitudes. Se as
circunstâncias alguma vez se mostrarem excessivas para este desprendimento, ele
não hesitará em deixar voluntariamente a vida; porque a vida, simplesmente,
está também entre as coisas que são neutras.
Tanto Zenão como Cleanthes morreram pelas
próprias mãos, pois, em certas condições, fica melhor ao filósofo deixar a vida
do que permanecer nela. Tão inequívoco como o dever do homem para consigo
próprio, é o seu dever para com os outros. Uma vez que todos os homens são
manifestações do Espírito-Fogo uno e criador, a doutrina da fraternidade
universal tinha um papel primordial no sistema estoico. O instinto racional e
social é uma coisa inerente à constituição do homem. A bondade para com o seu
semelhante é pois sua obrigação de todos os tempos; tem de aprender a ser
tolerante para com as suas faltas, descontar a sua ignorância, perdoar os seus
erros e ajudá-lo nas suas necessidades. Os estoicos entendiam o axioma de que
todo o universo é uma sociedade organizada; uma comunidade cívica na qual o
divino e o humano residem juntos numa cidadania comum.
“O mundo é como se fosse uma só cidade”.
Regis Camboa
http://blogdoregiscamboa.blogspot.com.br
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