Por Eduardo Szklarz
A saga de 4 mil anos da cidade mais
importante da história, de acordo com cada uma das 3 grandes religiões que a
tratam como lugar sagrado
Uma faixa de terra árida e remota, do tamanho
de 2 campos de futebol. Cravada num platô a 760 m de altura, cercada por
colinas e distante das rotas de comércio. Sem nenhuma riqueza mineral... Apenas
pedras, pedras e pedras. Jerusalém era assim quando nasceu, há mais de 4 mil
anos: um assentamento do Oriente Médio como tantos outros, fadado a desaparecer
na poeira do tempo.
Por que Jerusalém se tornou a cidade mais
importante da História? Como sobreviveu após ter sido duas vezes destruída, 23
vezes sitiada e 44 vezes capturada por povos e impérios tão diversos quanto
egípcios, assírios, persas, gregos, romanos, árabes, mamelucos, turcos e
ingleses? Como se converteu no solo sagrado de 3 religiões (judaísmo,
cristianismo e islamismo) e capital reivindicada por duas nações (Israel e
Palestina)? Por que Jerusalém era - e em grande parte ainda é - o centro do
mundo?
A resposta, quem diria, está nas pedras. A
começar pela Pedra Fundamental (Even Shetiya, em hebraico), que hoje se
encontra dentro do Domo da Rocha - a famosa cúpula dourada dos cartões-postais.
Segundo os textos sagrados, foi dela que Deus criou o mundo, que Salomão
construiu o primeiro Templo judaico, Jesus caminhou antes de ser crucificado e
Maomé ascendeu aos céus. Claro que não sabemos se isso tudo aconteceu, mas nem
é preciso: em Jerusalém, os mitos costumam ser mais importantes que as
verdades.
"Jerusalém é a única cidade que existe
duas vezes: na Terra e no céu", diz o historiador britânico Simon Sebag
Montefiore no livro Jerusalém, uma Biografia. "Ela se tornou o ponto de
comunicação entre os homens e Deus." Jerusalém é também a única cidade portátil,
já que suas sagas terrenas e celestiais são narradas na Bíblia. Ao longo dos
séculos, o caráter sagrado dessas pedras tem sido exaltado, e até fabricado,
por líderes políticos. E as pessoas continuam se matando por elas.
Jerusalém
Judaica
Jerusalém viveu seus primeiros milênios no
anonimato. Em 3.200 a.C., quando surgiram os núcleos urbanos em Canaã (onde
estão hoje Israel e Palestina), a futura Cidade Dourada não passava de um
cemitério da vizinha Jericó. A tribo dos cananeus construiu casas ali em 19
a.C. e, no século seguinte, os jebusitas aproveitaram a proteção natural das
colinas para erguer uma fortaleza. Conhecida como Sião, a cidadela jebusita
abrigava 1,2 mil pessoas em 6 hectares. Uma ninharia perto de centros como a
Babilônia, dona de uma área 170 vezes maior.
Só que a Babilônia virou ruína. E Sião -
aliás, Jerusalém - foi alçada ao estrelato há 3 mil anos pelos judeus. Segundo
a mitologia judaica, eles haviam fugido do cativeiro no Egito e se firmaram em
Canaã atendendo a um chamado de Javé, o Deus único. Fundaram os reinos de Judá
(ao sul) e Israel (ao norte). "Por volta de 1.000 a.C., o rei Davi
unificou os dois reinos e escolheu Jerusalém como capital porque não pertencia
às tribos judaicas do norte nem às do sul", diz Montefiore. Foi como
escolher o Planalto Central para construir Brasília, longe do Rio e de
Salvador.
A diferença é que a decisão de Davi mudou o
curso da História. Segundo a tradição judaica, o monarca guardou em Jerusalém a
Arca da Aliança, que continha as tábuas dos Dez Mandamentos. E seu filho, o rei
Salomão, construiu um templo para Javé no topo do monte Moriá, hoje chamado de
Monte do Templo - o lugar mais disputado do planeta. Já que ali também seriam
construídos o Domo da Rocha e a mesquita de Al-Aqsa, dois ícones islâmicos.
A existência histórica de Davi motivou
controvérsias até 1993, quando arqueólogos descobriram uma inscrição em pedra
em Tel Dan, norte de Israel. O texto confirmou que a dinastia de Judá era
chamada de Casa de Davi, indicando que o rei existiu. Tudo o que sabemos sobre
o Templo de Salomão, no entanto, vem da Bíblia. Mas pouco importa. O Templo
povoa o imaginário de Jerusalém de forma tão profunda que é impossível
entendê-la sem ele. Isso vale para outros objetos que compõem a história da
cidade, como a cruz de Cristo.
Com a morte de Salomão, em torno de 930 a.C.,
os reinos judaicos se dividiram e ficaram à mercê das potências locais:
egípcios, assírios e babilônios. No livro Antiguidades Judaicas, o historiador
antigo Flávio Josefo diz que em 586 a.C. o rei babilônio Nabucodonosor arrasou
Jerusalém, destruiu o Templo e mandou os judeus ao exílio. "Nabucodonosor
queria extinguir a cidade, mas só fez aumentar sua importância", diz
Montefiore. "Os judeus transformaram a tragédia numa experiência
transformadora, que redobrou a santidade de Jerusalém, criando o protótipo para
o Dia do Juízo Final."
Em 538 a.C., o rei persa Ciro derrotou os
babilônios e converteu Judá em província persa. Batizou-a de Judeia. Mas Ciro
permitiu que os judeus construíssem o Segundo Templo no lugar do primeiro. Mas
a bonança durou pouco. No século 4 a.C., o líder macedônio Alexandre, o Grande,
derrotou os persas e expandiu a cultura grega pelo Oriente Médio. A imposição
grega atingiu o auge em 167 a.C., quando o rei Antíoco IV desfigurou o Templo e
o dedicou a Zeus. A afronta estimulou uma resistência judaica em larga escala,
liderada pelos macabeus.
Em 141 a.C., os guerrilheiros derrotaram a
guarnição de Antíoco IV e fundaram o último estado judeu que existiu por lá até
a criação do Israel moderno, em 1948. Por ironia, a dinastia dos hasmoneus,
herdeira dos macabeus, abraçou ainda mais a cultura grega e causou uma profunda
divisão entre os judeus. O entrevero chamou a atenção do general romano Pompeu,
que derrubou as muralhas de Jerusalém em 63 a.C. e montou acampamento no Monte
do Templo. Pompeu logo perdeu poder na sede do Império - e a Judeia mergulhou
de novo no caos.
Até que Herodes, filho de um líder local,
fugiu para Roma e convenceu os senadores de que era capaz de governar a
província. Em 40 a.C., obteve deles o título de "rei dos judeus".
"Em 37 a.C., tomou Jerusalém após um massacre. Milhares de judeus foram
mortos", diz a pesquisadora britânica Karen Armstrong no livro Jerusalém -
Uma Cidade, Três Religiões. Herodes pelo menos deixou dois legados. Reergueu as
muralhas e reformou o templo judaico, que já tinha 500 anos. "O santuário
ficou conhecido como Segundo Templo", diz Armstrong.
Jerusalém
cristã
O cristianismo abraçou Jerusalém aos poucos.
Para entender essa história, é preciso lembrar que no início do século 1 os
judeus estavam divididos em facções. Os saduceus eram aliados da monarquia. Os
fariseus eram contra. Os essênios viviam isolados e os zelotes defendiam a luta
armada contra Roma. Pôncio Pilatos, o prefeito da Judeia, incitava os judeus
espalhando retratos de César pela cidade. Isso gerou o temor de uma nova
agressão ao Templo - e aprofundou a sensação de apocalipse. Os rabinos diziam
que um rei da linhagem de Davi inauguraria o Reino de Deus. Chamavam-no de
mashiah (christos, em grego), que significa "ungido" - Davi havia
sido ungido com óleo.
Foi nesse clima de tumulto que uma procissão
irrompeu em Jerusalém, por volta do ano 30, na véspera da Páscoa judaica. Seu
líder era Jesus, profeta judeu da Galileia (ao norte da Judeia). Segundo a
Bíblia, Jesus entrou no Templo e usou um chicote para expulsar os cambistas,
acusados de transformar o santuário num covil de ladrões. E profetizou:
"Não restará pedra sobre pedra". O que Jesus pretendia? "Só nos
resta conjecturar, já que os Evangelhos não fornecem muitas informações",
diz Armstrong. Os historiadores hoje sabem que os relatos atribuídos a Marcos,
Lucas, Mateus e João foram escritos décadas depois por autores desconhecidos
que não testemunharam os fatos. Seja como for, não há por que duvidar que Jesus
tenha sido crucificado, pois essa era uma sentença comum usada pelos romanos.
A Bíblia conta que Pilatos obrigou Jesus a carregar
uma cruz desde o Pretório até o local da crucificação: o monte Gólgota, ou
Lugar da Caveira (Calvarius, em latim). Foi quando Jesus se tornou Cristo:
alguns discípulos afirmaram que ele ressuscitara para anunciar o Reino
Vindouro. O movimento cristão se expandiu pela costa do Mediterrâneo, sobretudo
graças às viagens missionárias de Saulo de Tarso, o apóstolo Paulo.
Desde o início, houve cismas entre os
seguidores de Cristo. O grupo de Jerusalém, liderado por Tiago, tinha
desavenças com o da diáspora, encabeçado por Paulo - que acabaria prevalecendo.
Em 49, os dois polos se reuniram em Jerusalém para tentar um acordo. "Mas
o Concílio de Jerusalém foi um fracasso. Delineou um consenso, mas foi
impossível levá-lo à prática", diz Paul Johnson no livro História do
Cristianismo. Em 66, os zelotes iniciaram um novo levante contra Roma. E o
imperador Vespasiano foi implacável. Em 70, enviou uma tropa que sitiou
Jerusalém e arrasou o Templo. Flávio Josefo fala em 1,5 milhão de mortos - um
exagero, mas que expressa a dimensão da tragédia. Os judeus nunca reconstruíram
o santuário, esperando fazer isso após a vinda do Messias. Restou a muralha
ocidental, que sustentava a plataforma, o Muro das Lamentações, o lugar mais
sagrado do judaísmo.
Para os cristãos, a tragédia do Templo
significou que os judeus haviam perdido o elo com Deus. "Com a destruição
de Jerusalém, o cristianismo deixou de ser um partido político do judaísmo e se
tornou um partido dos gentios, externo e hostil ao judaísmo", diz o
historiador Luiz Alberto Moniz Bandeira na introdução de A Origem do
Cristianismo, de Karl Kautsky. Roma seguia perseguindo os cristãos. O imperador
Adriano até ergueu um templo dedicado a Vênus no lugar identificado com a tumba
de Jesus. E rebatizou Jerusalém de Aelia Capitolina. Tudo mudou no século 4,
quando o imperador Constantino se converteu ao cristianismo. "A hierarquia
cristã, com seus bispos e presbíteros, tinha um paralelo com a estrutura
imperial: haveria um estado, uma religião, um imperador", diz Montefiore.
Constantino enviou a mãe, Helena, a Jerusalém
para rastrear os passos de Jesus. Beirando os 80 anos, Helena anunciou ter
achado a tumba de Cristo (sob o templo de Vênus, que foi demolido), o lugar da
crucificação e até a cruz - algo sonhado por qualquer arqueólogo. Iniciou as
obras das igrejas do Santo Sepulcro e da Ascensão e indicou a Via Dolorosa (o
caminho pelo qual Jesus carregou a cruz), criando uma rota para os peregrinos.
Com a queda de Roma, no século 5, Jerusalém passou para o Império Bizantino.
Depois caiu sob domínio persa e muçulmano. Os cristãos só voltariam lá em 1099,
quando as Cruzadas tiraram a Terra Santa do Islã. O líder Godofredo de Bulhão
morou na mesquita de Al-Aqsa e transformou o Domo da Rocha em igreja.
Jerusalém
Islâmica
No século 7, um novo Deus se debruçou sobre
as muralhas de Jerusalém. Os exércitos de Alá chegaram trazendo a mensagem
revelada a Maomé, um profeta que migrou de Meca a Medina (na atual Arábia
Saudita) para formar a primeira comunidade islâmica, a ummah. Maomé foi ao
mesmo tempo chefe político e religioso. E essa união entre Igreja e Estado foi
mantida no Islã por seus sucessores, os califas.
Quando entrou nas muralhas, o califa Omar
comandou a conquista mais pacífica da história de Jerusalém. Rendeu os cristãos
sem derramar sangue e permitiu que os judeus rezassem no Monte do Templo após
séculos de repressão bizantina. Judeus e cristãos receberam o status de dhimmis
("minorias protegidas"). Eles podiam seguir sua fé desde que pagassem
tributos.
A tolerância inicial dos muçulmanos com os
"povos do livro" tinha razão de ser. Maomé havia estudado as
escrituras judaicas e cristãs. Pregava a submissão ("islã") a Alá,
mas respeitando profetas como Moisés e Jesus. No entanto, tal como os
monoteísmos anteriores, o Islã reivindicava o seu Deus como o verdadeiro. Isso
geraria conflitos nos anos seguintes - e Jerusalém, mais uma vez, seria o palco
da disputa. O sinal mais evidente da mudança veio com o califa Abd al-Malik.
Ele vislumbrou um império unificado em torno da fé islâmica, tal como
Constantino fez ao enlaçar Roma com o cristianismo.
Em 691, Al-Malik construiu um imenso edifício
octogonal com uma cúpula dourada de 20 m de diâmetro, o Domo da Rocha,
exatamente no Monte do Templo - tão sagrado para judeus e cristãos. "O
recado de Al-Malik foi claro: o Islã não era mera religião sucessora do
cristianismo, mas uma nova e universal revelação", diz o historiador
Bernard Lewis no livro O Oriente Médio. "E o califado não era apenas o
sucessor de Roma e da Pérsia, mas uma sociedade mundial."
A importância do Domo foi reforçada pelos
versículos do Corão (livro sagrado do Islã) gravados em seu interior. Um deles
diz: "Não há outro Deus, mas só um Deus, e ele não tem companheiro. Maomé
é o Profeta de Deus, que enviou seu mensageiro com a sua orientação e a
religião verídica para que faça prevalecer sobre todas as outras" (9:33).
"O califa Al-Walid, filho de Al-Malik,
construiu a Mesquita de Al-Aqsa a poucos metros do Domo, formando o primeiro
grande complexo de santuários muçulmanos", diz o arqueólogo Eric Cline no
livro Jerusalem Besieged (Jerusalém Sitiada). Segundo Cline, a obra foi fundamental.
Embora o Corão nunca mencione Jerusalém, um versículo narra a viagem noturna
que Maomé fez da Mesquita Sagrada, em Meca, a uma "mesquita distante"
(al-masjid al-aqsa) - de onde o Profeta teria subido ao céu. A tradição
muçulmana associou a "mesquita distante" a Al-Aqsa.
Assim, Jerusalém se tornou a terceira cidade
sagrada do Islã, atrás de Meca e Medina. Os muçulmanos primeiro a chamaram de
Bait al-Maqdis, numa alusão ao hebraico Beit ha-Mikdash, o nome bíblico do
Templo. Depois de Al-Quds ("a Santa", em árabe). E, quanto mais
santa, mais dividida Jerusalém se tornou. Pense bem: 3 deuses disputando uma
cidade... É como acionar uma bomba-relógio. Coincidência ou não, em 747 um
terremoto causou estragos no Domo e na mesquita, que desde então foi restaurada
diversas vezes.
Os cruzados conquistaram a Terra Santa com um
massacre em 1099, mas o sultão curdo Saladino rendeu-os com cortesia em 1187.
No século 13, Jerusalém caiu sob o império dos mamelucos, um povo islamizado da
Ásia Central. Foi nessa época que começou a se parecer mais com a Jerusalém
Velha de hoje, com os bairros muçulmano, judeu, cristão e armênio - onde se
concentraram igrejas ortodoxas. Os mamelucos também construíram madaris
(escolas religiosas) sobre os pórticos ao redor do Monte do Templo.
E a velha tolerância chegou ao fim. "Os
mamelucos obrigaram os judeus a usar um turbante amarelo, e os cristãos, a usar
um azul", diz Montefiore. "Seus dias de minorias protegidas eram
coisa do passado." No século 15, Jerusalém caiu sob o domínio do último
califado muçulmano, o dos turcos-otomanos. Eles mantiveram 400 anos de relativa
coexistência entre os habitantes e restauraram o espaço público. Foi o sultão
otomano Solimão, o Magnífico, que mandou reerguer as muralhas da cidade - que
podem ser vistas até hoje.
A
cidade dividida
Milhares de anos de disputas desembocaram em
um acordo mundial. Em 1947, as Nações Unidas aprovaram a partilha da Palestina
(na época, administrada pelos britânicos) entre um estado judeu e outro
árabe-palestino. Jerusalém se tornaria internacional. A decisão foi aceita
pelos judeus e rejeitada pela Liga Árabe. Teve início uma guerra em 1948, após
a independência de Israel. Com o armistício, no ano seguinte, Jerusalém foi
dividida pela "linha verde": o pedaço ocidental ficou com Israel, e o
oriental (Cidade Antiga incluída), com a Jordânia.
Ai de quem passasse de um lado a outro. O
fotógrafo austríaco David Rubinger que o diga: ele clicou o momento em que a
freira de um hospital católico de Israel deixou cair a dentadura de uma paciente
do lado jordaniano. Foi preciso muita negociação para que a mulher tivesse os
dentes de volta. Em 1967, na Guerra dos Seis Dias, Israel conquistou a faixa
oriental da cidade e declarou ter unificado Jerusalém - tal como Davi teria
feito 3 mil anos antes. Os palestinos, por sua vez, evocam heróis como Saladino
na hora de exigir soberania. Dessa forma, as histórias e os mitos do passado
sempre retornam para inviabilizar as negociações de paz.
Hoje, essa velha senhora é a maior cidade de
Israel, com 790 mil habitantes. Apesar de alvo do terrorismo, é uma das cidades
mais seguras do planeta: apenas 9 pessoas foram assassinadas na cidade em 2009,
e 12 em 2008. Menos do que São Paulo em um fim de semana.
0 Comentários