Ir.'.
William Almeida de Carvalho
I - As Origens
Antigas do Deus Mitra.
Existe
muita controvérsia sobre a etimologia de Mitra. Na Índia védica, Mitra
significava 'amigo', no persa avéstico era traduzido como 'contrato'. Esta
última definição é a que prevalece nos nossos dias, sendo pois Mitra a
personificação do contrato. Segundo os etimologistas, Mit(h)tra é composto de
um sufixo instrumental - "tra" - que significa instrumento de
trabalho e de um prefixo "mi" que é encontrado em todas as línguas
indo-européias sob diferentes raízes. "Mei" pode significar ainda
"lugar, encontro". Em sânscrito "mitram" significa
"amigo". Mitra significando, pois, 'contrato' e 'amigo' não se opõem
realmente, visto que não existe amizade sem um engajamento mútuo. Não se fala
em 'pacto de amizade'? Mitra se encontra sob diferentes ortografias: Mihr,
Meher, Meitros, etc.
Os
trabalhos clássicos de Mircea Eliade e principalmente os de Georges Dumézil
sobre a Índia védica demonstram uma estrutura fundamental da sociedade e da
ideologia das diferentes sociedades indo-européias. A sociedade é dividida em
três classes: sacerdotes, guerreiros e agricultores que correspondem a uma
ideologia religiosa trifuncional: a função da soberania mágica, da
sacrificadora e da jurídica (Varuna-Mitra, Rômulo-Júpiter e Odin); a função dos
deuses da força guerreira (Indra, o etrusco Lucumão-Marte e Thor) e,
finalmente, a das divindades da fecundidade e da prosperidade econômica (os
gêmeos Nâsatya ou os Asvins, Tatius [e os sabinos]-Quirino e Freyr).
Encontra-se
o Deus Mitra no Panteão Védico da Índia desde 1380 a. C. Este Proto-Mitra
estaria associado a Varuna e forma uma dualidade antitética e complementar.
Mitra seria a face jurídico-sacerdotal, conciliadora, luminosa, próxima da
terra e dos homens enquanto Varuna seria o aspecto mágico violento, terrível e
tenebroso. Mitra torna-se, pois, a garantia do compromisso, a força
deliberante, enquanto Varuna o respeito ao bom direito pela força atuante. A
antítese Mitra-Varuna encontra-se também em Roma com a oposição dos dois
primeiros reis: Rómulo (Varuna-Júpiter), semi-deus violento e Tatius (ou
Numa-Mitra), ponderado e sábio, instituidor das questões sagradas e das leis,
ligado igualmente aos deuses da fertilidade e do solo. Mitra é o Deus soberano
sob seu aspecto racional, claro, regrado, calmo, benevolente, sacerdotal. Seu
papel é secundário quando esta isolado de Varuna, mas compartilha com este
todos os atributos da soberania. O Sol é seu olho, nada lhe escapa. A conclusão
de um acordo se fará através de um sacrifício ao Deus Mitra, mas um sacrifício
incruento, pelo menos no início, pois, mais tarde, terminará por aceitar
sacrifícios sangrentos. Esta evolução é metaforizada pelo papel de Mitra na
história dos Deuses, pois terminará por ser associado à morte do Deus Soma. Na
origem, Mitra recusa-se a participar da morte ritual, sendo amigo de todos,
pois prestará sua ajuda para, no final, ser um ator ativo na morte ritual.
O
Mitra avéstico, encontrado na religião iraniana, é o Mitra mais conhecido e
divulgado e precede o monoteísmo zoroastriano. A influência da antiga religião
iraniana para a formação religiosa do Ocidente é bastante significativa: o
tempo linear, a articulação dos diversos sistemas dualistas - sejam cósmicos,
éticos ou religiosos -, o mito do Salvador; a elaboração de uma escatologia
'otimista' que proclama o triunfo do Bem sobre o Mal; a salvação universal; a
doutrina da ressurreição dos corpos; certos mitos gnósticos; a mitologia dos
Magos etc.
Na
religião dos aquemênidas, a oposição entre Aúra-Masda (o Bem) e os daêvas (o
Mal) sempre foi presente, já que na Índia védica aconteceu o contrário: no
conflito entre os devas e os asura, aqueles foram vencedores, pois tornaram-se
os verdadeiros deuses, ao triunfarem sobre as divindades mais arcaicas - os asura
- que nos textos védicos são considerados figuras 'demoníacas'. Processo
similar, ainda que com sinal trocado, aconteceu no Irã: os antigos deuses, os
daêvas, foram demonizados (ai, dos perdedores!). Eliade argumenta que
"pode-se determinar em que sentido se efetuou essa transformação: foram
sobretudo os deuses de função guerreira - Indra, Saurva, Vayu - que se tornaram
daêvas. Nenhum dos deuses asura foi 'demonizado'. Aquele que, no Irã,
correspondia ao grande asura proto-indiano, Varuna, torna-se Aúra-Masda".
Aqui,
a antítese Varuna-Mitra é substituída pelo duo Mitra-Aúra sendo que a função
continua a mesma. Mitra é um deus da luz, da aurora, guardião que socorre as
criaturas, onisciente e vitorioso. Aúra, tornando-se progressivamente
Aúra-Masda, transforma, também, a significação de Mitra, metamorfoseando-o
paulatinamente num deus guerreiro. Mitra continua deus do contrato e do acordo
e assegura uma ligação entre os diferentes níveis da sociedade da qual é
garantidor da ordem, representada pelo gado e a fecundidade. Interessante notar
que aquela trilogia de Dumézil - sacerdote, guerreiro e agricultor - começa a
ser baralhada. Este Mitra avéstico, mais do que o védico, beneficiará os
sacrifícios, notadamente os do Touro. Seu papel de deus guerreiro, contudo,
crescerá à medida que Aúra-Masda fortifica e torna dominante o seu lugar no
Panteão dos Deuses. Tal 'evolução' é lógica, pois como deus garantidor da
ordem, sempre estará ao serviço do respeito da lei e do contrato para aqueles
que o reverenciam. Com o tempo metamorfoseia-se num deus violento e cruel. É um
deus solar com mil olhos e orelhas e, como vimos, um deus da fertilidade dos
campos e dos rebanhos. Atua, como Hermes, no papel de psicopompo, ou seja,
condutor das almas dos mortos, pois como senhor dos Céus conduz as almas até o
Paraíso.
Mitra
foi adorados por quase todos os soberanos persas: Ciro o reverenciava; sob
Dario houve um breve eclipse, pois este, segundo alguns especialistas, era
partidário de Zoroastro; e reaparece com Artaxerxes. Na cerimonial da realeza
persa, o dia de Mitrakana era o único dia em que o rei persa tinha o direito de
embriagar-se, numa clara analogia com a morte védica.
Mitra
retorna ao primeiro plano como deus do sol, dos juramentos e dos contratos, sob
a influência dos Magos. Estes foram uma classe de sacerdotes dos antigos medas
com um papel sacrificial importante e que entre os gregos antigos gozavam de
uma reputação de serem depositários de uma sabedoria esotérica. No Panteão dos
Deuses avésticos, Mitra seria filho de Anihata ou Anahita, a gênia feminina do
fogo, uma espécie de Virgem Imaculada, Mãe de Deus. É a única figura feminina
associada a Mitra, pois este permanecerá celibatário por toda a vida, exigindo
de seus admiradores a prática do controle de si, a renúncia e a resistência a
toda forma de sensualidade. Vale salientar que o maior Mithraeum (templo)
construído em Kangavar na Pérsia Ocidental era dedicado a esta deusa. Segundo
reza o Mihr Yasht, o extenso hino em honra a Mitra da saga religiosa persa, a
história de Mitra é a seguinte: após ter sido promovido ao panteão dos Grandes
Deuses, Aúra-Masda mandou construir-lhe uma mansão no cimo do Monte Hara, ou
seja, no mundo espiritual, além da abóbada celeste. Postou-se aí como o
protetor de todas as criaturas e não era adorado como todos os outros deuses
menores com preces rotineiras. Aúra Masda consagrou Haoma como sacerdote de
Mitra que o adorava e lhe oferecia sacrifícios. Aúra Masda cria e prescreve o
rito próprio ao culto de Mitra no paraíso. Mitra, assim, retorna à terra para o
combate contra os daêvas sem, contudo, conseguir vencê-los. Somente quando
Mitra se une a Aúra Masda o destino dos daêvas será selado. Mitra será, a
partir daí, adorado como a luz que ilumina todo o mundo.
No
tocante aos babilônios, estes incorporarão o Deus Mitra no seu Panteão e, em
troca, introduzirão, na religião persa, seu culto solar, tendo a astrologia
como um dos seus pontos mais fortes. Convém salientar que a cultura judaica
sofrerá uma influência marcante do dualismo zoroastriano a partir do cativeiro
em 597 a.C. No judaísmo primordial, Iavé era concebido como o único criador do
Mundo e do Universo, ou seja a totalidade absoluta do real, contendo inclusive
o mal. O dualismo Iavé - HaShatan advém de uma crise espiritual que se seguiu
ao cativeiro babilônico, personificando aspectos negativos da vida, sob a forma
de Satã, que se tornará progressivamente também eterno. Satã seria, então, o
fruto de uma cissão da imagem arcaica de Iavé combinado com as doutrinas
dualistas iranianas. Esta tradição impactará fortemente o cristianismo
nascente.
O
Mitra irano-helenístico tem a sua gênese com as conquistas de Alexandre e a
queda do império persa durante o ano de 330 a. C., pois Alexandre e 10.000 de
seus soldados macedônios se casam com mulheres persas e mais, dentro do ritual
persa. Sabe-se que alguns destes macedônios e seus filhos, iniciados pelas mães
persas, introduziram o culto de Mitra na Macedônia e na Grécia. É deveras
conhecido que a adoração deste Deus Mitra, advindo do inimigo persa, nunca
obteve uma grande popularidade na Grécia, apesar de continuar a manter a
influência junto à aristocracia meda e iraniana. Tanto assim que o nome
Mitrídate (dado a Mitra) é encontrado em diversos reis partos, do Bósforo e do
Ponto Euxino. A arqueologia tem descoberto diversos templos - Mitreas - na
Armênia. Apesar da pouca influência junto ao povo grego, a religião iraniana
entrou num vasto movimento sincrético junto à cultura helênica. Mitra era
adorado em todo o império de Alexandre e os Magos continuavam a ser os
sacerdotes sacrificadores. O culto repousava sobre uma cronologia escatológica
de 7.000 anos, cada milênio sendo governado por um planeta. Daí advém a série
dos 7 planetas, dos 7 metais, das 7 cores etc. Durante os 6 primeiros milênios,
Deus e o Espírito do Mal combatem pela supremacia e, quando o Mal parecia
vitorioso, Deus enviou o Deus solar Mitra (Apolo, Hélio) que domina o sétimo
milênio. No fim deste período setenal, a potência dos planetas cessa e um
incêndio universal recobre o mundo.
Curioso
nesta época é a biografia do rei Mitrídate VI Eupator, rei do Ponto, anterior
ao nascimento de Cristo. Seu nascimento foi anunciado por um cometa, um raio
caiu sobre o recém-nascido, deixando-lhe uma cicatriz. A educação deste rei é
uma longa série de provas iniciáticas. É visto durante sua coroação como uma encarnação
de Mitra. A biografia real é muito próxima do Natal cristão. Ele será o último
rei de uma longa lista de grandes reis Mitridates. Conquistou quase toda a Ásia
Menor por volta de 88 a. C., mas foi derrotado pelos romanos em 66.
Provavelmente aliou-se aos piratas Cilicianos dos quais falaremos a seguir.
Foi, também, o primeiro monarca a praticar a imunização contra os venenos, a
qual, segundo o Aurélio, se adquire por meio da repetida absorção de pequenas
doses deles, gradualmente aumentadas, daí o nome mitridatismo.
A
grande popularidade e o apelo do mitraísmo como uma forma refinada e final do
paganismo pré-cristão foi discutida pelo historiador grego Heródoto, pelo
biógrafo, também grego, Plutarco, pelo filósofo neoplatônico Porfírio, pelo
herético gnóstico Orígenes e por São Jerônimo, um dos pais da Igreja.
O
contato com o mundo helênico desenvolvia-se essencialmente a partir de Comageno
na Ásia Menor. Daí surgem os primeiros testemunhos sobre Mitra, como um Deus
dos Mistérios no primeiro século a. C., curiosamente, no seio dos piratas
Cilicianos em luta contra os romanos. É dentro deste contexto de resistência e
luta que Mitra pode tornar-se um Deus iniciático. Plutarco diz que celebravam
em segredo 'os mistérios de Mitra'. Sua capital era Tarso, onde nasceu S.
Paulo, e Perseu era o seu Deus fundador. O símbolo da cidade era o combate do
Leão com o Touro. Paralelamente a isto, os Magos medas se fixaram na Ásia Menor
e na Mesopotâmia, infiltrando-se cultural e religiosamente no mundo helênico, principalmente,
como vimos, na aristocracia. Cita-se que o rei Tiridate quando veio a Roma para
ser coroado rei da Armênia por Nero, dirigiu-se ao imperador chamando-o por
Mitra (Deus Sol).
O
Mitra romano faz sua 'rentrée' no Império através dos Mistérios. O termo
"mistério" possui um sentido muito preciso. Os mistérios gregos, e
depois romanos, foram numerosos: Dionísio, Elêusis, Cibele, Átis e Deméter.
Podem ser ainda citados os de Ísis, Sarápis, Sabázios, Júpiter Doliqueno etc.
Uma certa bruma enigmática envolvia todos estas cerimônias dos mistérios, mas o
comum entre eles, era o aspecto 'solar', apesar de todos esconderem sua
identidade essencial. Desnecessário dizer que, por serem os mistérios, secretos
e ocultos, poucos documentos escritos chegaram até nossos dias. O pouco que se
sabe sobre eles advém da patrística cristã que, na ânsia de combater o
mitraísmo, terminou por nos legar uma série de descrições sobre o mesmo. Alguns
autores gauleses chegam a afirmar que assim como a maçonaria foi a religião clandestina
da IIIª República Francesa, o mitraísmo sustentava subterraneamente a ideologia
da Roma Imperial.
A
inoculação do veneno mitraíco no seio do Império, segundo Plutarco (Vita
Pompeu), foi o transplante, feito por Pompeu em 67 a. C., de 20.000 prisioneiros
Cilicianos (uma província na costa sul oriental da Ásia Menor) que praticavam
os "ritos secretos" de Mitra. Daí, a epidemia mitraíca se alastrou
por todo o mundo romano, reforçada ainda pelos múltiplos contatos das tropas de
ocupação romana com as outras culturas mitraícas, tendo atingido o seu zênite
no século III, quando começou a travar uma luta de vida e morte com o
cristianismo. Tanto assim que do século II ao IV da nossa era, os Mithrae (ou
Mithraeum no singular) - templos dedicados ao culto do deus - chegaram a ser
mais de 40 em Roma. Um dos maiores templos construídos podem ser encontrados
hoje nos subterrâneos da Igreja de São Clemente, perto do Coliseu. Esta
adoração não se restringia somente à capital do Império, mas principalmente às
cidades portuárias da atual Itália: Óstia, Antium, no mar Tirreno; Aquiléia, no
Adriático, Siracusa, Catânia, Palermo etc. Paralelamente, a propagação se dá na
Áustria, na Germânia, nas províncias danubianas, na Polônia, na Hungria e
Ucrânia e num movimento de volta, nas províncias da Trácia e da Dalmácia, num
retorno à Grécia e a Macedônia. No terceiro século, encontram-se traços
mitraícos na Criméia, no Eufrates, no Egito e sobretudo no Maghreb. Curioso é
que a Espanha e Portugal sofreram pouquíssima influência. A Gália oriental,
renana e belga, pagou o seu tributo, assim como também a Aquitânia.
Encontram-se vestígios na região parisiense, como também em Boulogne sur Mer.
Na Inglaterra, a concentração se dá em Londres e na região norte, ao longo do
muro de Adriano, até Canterbury. Locais de adoração mitraíca foram encontrados
também, na Bretanha, na Romênia, na Alemanha, na Bulgária, na Turquia, na
Pérsia, na Armênia, na Síria, em Israel etc. No final do século III, Mitra era
adorado da Escócia à Índia, chegando até a oeste da China, onde era conhecido
como Amigo, nome que indica uma filiação védica.
Mitra
passa a ser representado como um general militar. É o Amigo do homem durante a
sua vida e seu protetor contra o mal após a sua morte. Mitra não é só propagado
pelos militares romanos como também pelos funcionários, comerciantes, artistas,
meio jurídico e financeiro e, principalmente nos círculos do conhecimento. Ao
contrário da Grécia, penetra nos meios mais modestos e populares. Por mais de
trezentos anos, os romanos adorarão Mitra.
Em
meados do segundo século, seu culto atinge a cúpula militar. Os neófitos
começaram a congregar-se sob os Flávios, espalhando-se o culto na época dos
Antoninos e Severos. Os próprios Imperadores se fizeram iniciar nos mistérios,
havendo suspeitas de que Nero tenha sido um deles. Contudo, é Cômodo (185-192)
que parece ter sido o primeiro a se converter ao culto, seguido por Sétimo
Severo. Caracala (211-217) encoraja o culto do Deus solar sob a forma de Sol
invictus. O culto foi reintroduzido por Aureliano (270-275). O apoio oficial
virá, entretanto, no reinado de Diocleciano em 307. Apesar destas emanações,
não parece que Mitra tenha recebido uma preponderância imperial na corte dos
Césares pagãos. Deve-se notar, ainda, que do mesmo modo que o cristianismo, sua
influência não foi estendida ao meio rural. Alguns autores sugerem que isto se
deveu à exclusão das mulheres nas funções litúrgicas.
II - Representações
Litúrgicas e Ritualísticas do Deus Mitra
Mitra
é um Deus de forma humana. É representado sob a forma de um jovem montado num
touro e, com uma das mãos, empunha uma adaga para o degolar. Alguns afrescos,
encontrados na parte mais central do Mithraeum (templo subterrâneo de
adoração), representam Mitra com a cabeça voltada para o alto ou para o lado,
significando desgosto com o que está fazendo. Sincreticamente, encontram-se
ainda imagens de Teseu matando o Minotauro ou Perseu chacinando a Górgona ou,
ainda, Hércules esfolando o Touro. Mitra está vestido em trajes orientais e muitas
vezes circundado por dois meninos ou pastores que podem simbolizar o levante e
o ocaso, o Outono ou a Primavera, as marés - montante e vazante - e ainda, a
vida e a morte. A cena possivelmente se passa numa gruta. Um corvo, mensageiro
do sol, está quase sempre na borda do rochedo. Vê-se ainda um cão se
aproximando para beber o sangue da vítima, uma serpente enroscada dentro de uma
pequena cratera e ao redor de um recipiente, um leão ameaçador, espigas de
trigo sobre o rabo do touro e um escorpião que pica os testículos do animal
morto.
A
figura do touro tem sido exaltada através do mundo antigo pela sua força e
vigor. Os mitos gregos falavam sobre o Minotauro, um monstro metade-homem
metade-touro que vivia no Labirinto nos subterrâneos da ilha de Creta e que
exigia um sacrifício anual de seis mancebos e seis donzelas antes de ter sido
morto por Teseu. Peças de arte minóica representavam ágeis acrobatas saltando
bravamente sobre o dorso de touros. O altar, em frente ao Templo de Salomão em
Jerusalém, era adornado com chifres de touros que acreditavam ser portadores de
poderes mágicos. O touro era também um dos quatro tetramorfos, ou seja um dos
símbolos animais associados com os quatro evangelhos. A mística deste poderoso
animal ainda sobrevive atualmente nas touradas da Espanha e do México, no
rodeio dos 'cowboys' dos EEUU e agora, também, no Brasil.
Os
estudos clássicos do belga Franz Cumont (1913) que provaram ser os mistérios
mitraícos derivados das antigas religiões iranianas explica parcialmente como a
cena da morte do Touro - conhecida como tauroctonia - inexiste na mitologia
iraniana com a figura de Mitra. Cumont responde que teria encontrado textos que
apresentavam o matador do touro como Ahriman, ou seja a força cósmica do mal na
religião iraniana.
Somente
a partir do Primeiro Congresso Internacional de Estudos Mitraícos (1971)
levantaram-se novas hipóteses para explicar esta incongruência. A iconografia
tauroctônica seria, na verdade, um mapa astronômico! Tais hipóteses, segundo os
estudos de David Ulansey, baseiam-se em dois fatos: i) cada figura, na
tauroctonia padrão, teria um paralelo com um grupo de constelações ao longo de
uma faixa contínua no céu: o boi tem um paralelo com a constelação do Touro, o
cachorro com o Cão Menor, a serpente com a Hidra, o corvo com o Corvus e o
escorpião com Scorpio; ii) a iconografia mitraíca, em geral, é permeada por
imagens astronômicas explícitas: o zodíaco, os planetas, o sol, a lua e as
estrelas são permanentemente encontrados na arte mitraíca.
A
pesquisa de Ulansey sobre cosmologia antiga, principalmente a astronomia
greco-romana, focaliza o seu caráter "geocêntrico" no tempo dos
mistérios mitraícos, no qual a terra era fixa e imóvel no centro do universo e
tudo girava à sua volta. Nesta cosmologia, o universo era imaginado como
estando contido numa grande esfera no qual as estrelas eram fixadas em várias
constelações. Hoje sabemos que a terra tem um movimento de rotação sobre o seu
eixo cada dia, mas na antigüidade acreditava-se que, uma vez por dia a grande
esfera das estrelas fazia a sua rotação sobre a terra, oscilando num eixo que
corria da abóboda do polo norte para o do sul. No seu giro, a esfera cósmica
carregava o sol, explicando assim a oscilação do mesmo sobre a terra.
Além
deste movimento, os antigos atribuíam um segundo movimento mais vagaroso.
Enquanto hoje sabemos que a terra gira ao redor do sol durante o ano, na
antigüidade acreditava-se que, durante o ano, o sol - que estava bem mais
próximo do que as outras estrelas - viajava sobre a terra, traçando um grande
círculo no céu tendo como fundo as outras constelações. Este círculo, traçado
pelo sol durante o ano, era conhecido como o zodíaco, uma palavra significando
'figuras vivas', pois o sol passeava, durante o ano, sobre doze diferentes
constelações que representavam diversas figuras de animais e formas humanas.
Visto que os antigos acreditavam na existência real de uma grande esfera de
estrelas, suas várias partes - tais como os eixos e os pólos - jogavam um papel
crucial na cosmologia de seu tempo. Particularmente, um importante atributo da
esfera das estrelas era muito mais bem conhecido do que hoje: o equador,
denominado na época de equador celeste. Assim como o equador terrestre é
definido como um círculo ao redor da terra eqüidistante dos pólos, também o
equador celeste era entendido como um círculo ao redor da esfera das estrelas
eqüidistante dos pólos desta mesma esfera. O círculo do equador celeste era
visto como tendo uma importância especial por causa dos dois pontos em que ele
cruzava com o círculo do zodíaco: estes dois pontos eram os equinócios, ou
seja, o local onde o sol, no seu movimento através do zodíaco, cortava-o no
primeiro dia da primavera e no primeiro dia do outono. Assim, o equador celeste
era responsável pela definição das estações e, por esta razão, tinha uma
significação concretíssima ao lado seu significado astronômico mais abstrato.
Um
outro fato sobre este equador celeste é decisivo: como não estava fixo, possuía
um movimento lento alcunhado de "precessão dos equinócios". Este
movimento, sabemos hoje, é causado por uma oscilação na rotação da terra sobre
seu eixo. Como resultante desta leve oscilação, o equador celeste parece mudar
sua posição no curso de milhares de anos. Este movimento é conhecido como a
precessão dos equinócios por que o seu efeito observável mais facilmente é uma
mudança na posição dos equinócios ou seja, os locais onde, como vimos acima, o
equador celeste cruza o zodíaco. Desta maneira, esta precessão resulta num movimento
vagaroso para trás ao longo do zodíaco, passando sobre uma constelação do
zodíaco a cada 2.160 anos e percorrendo todo o zodíaco a cada 25.920 anos.
Hoje, por exemplo, o equinócio da primavera está no final da constelação de
Peixes, mas, em algumas dezenas de anos, estará entrando em Aquário - já se
fala muito, atualmente, na Era de Aquário. A grosso modo, o equinócio da
primavera estava em Touro entre 4.000 a 2.000 a.C. mais ou menos; em Áries de
2000 a.C. até o nascimento de Cristo, ou seja nos tempos greco-romanos; a Era
de Peixes - o cristianismo -, da gênese do mesmo até a nossa mudança de milênio
e de 2000 e poucos em diante, a tão decantada Era de Aquário.
Ulansey
descobriu que, neste fenômeno da precessão dos equinócios, estaria a chave para
desvendar o segredo do simbolismo astronômico da tauroctonia mitraíca. Para as
constelações desenhadas nas tauroctonias mais comuns havia uma coisa constante:
todos eles estavam posicionados no equador celeste como na época imediatamente
precedente à Era de Áries dos tempos greco-romanos. Durante esta idade
anterior, que podemos chamar de Era de Touro (como vimos durou mais ou menos de
4.000 a 2.000 a.C.), no equador celeste da época estavam Taurus (Touro, o
equinócio da primavera), Canis Minor (o Cão), Hydra (a serpente), Corvus (o
Corvo) e Scorpio (o Escorpião que estava no extremo oposto do Touro, ou seja, o
equinócio do Outono). A coincidência é impressionante, todos estas constelações
estão representadas nas tauroctonias.
Em
muitas ilustrações tauroctônicas, a cabeça de Mitra é nimbada de estrelas.
Assim, a morte do Touro representaria, no zodíaco, o fim da Era de Touro e o
começo da Era de Aries no equinócio da primavera e Mitra, o deus Todo-Poderoso,
que poderia reger e mudar todo o sistema cósmico. Nos escritos do filósofo
neoplatônico Porfírio, encontra-se a alusão de que a caverna, onde se posiciona
o Mithraeum e está desenhada a tauroctonia, na sua parte mais recôndita, seria,
na verdade, uma 'imagem do cosmos'.
Como
curiosidade, Freud e Jung tiveram uma divergência básica sobre a interpretação
psicanalítica do morte do touro, sendo um dos pontos básicos de divergência e
conflito entre ambos, resultando, posteriormente, em separação definitiva.
Mitra,
Deus solar, também é representado com a cabeça de um Leão quando é saudado com
o título de Sol invictus. São os afrescos, encontrados em Mênfis, com as coxas
peludas, patas de caprino e a cabeça radiada. Mitra Leoncéfalo, portando as
chaves, é outra imagem lapidar, pois fora das cenas tauroctônicas, ele é
representado em momentos de refeição ou de iniciação.
No
tocante ao culto e à liturgia, estes se faziam no interior do Mithraeum e na
presença dos fiéis. A liturgia constava de ofícios e orações; manducação de pão
e sumpção de água e vinho, acompanhadas de fórmulas sagradas; danças de luzes e
fórmulas de êxtase; orações ao nascer do Sol, ao meio-dia e ao ocaso. As festas
realizavam-se no sétimo mês do ano, mas todos os meses se festejava uma semana
inteira, sendo cada dia destinado a um planeta. Comemorava-se, de modo
especial, o dia natalício do deus (Natalis Invicti), a 25 de dezembro. Os
ofícios dos templos faziam-se à luz de velas, com toques de sinos e com hinos,
cujo teor não se conhece, porque se perderam.
O
Mithreum típico era uma pequena câmara retangular subterrânea (25x10m) com um
teto arqueado. Um corredor dividia o templo ao meio, com bancos de pedra dos
dois lados de 80 cm de altura no qual os membros do culto podiam descansar
durante suas reuniões. Um mithraeum podia comportar de 20 a 30 pessoas. No
fundo do templo, no final do corredor, havia sempre uma representação -
normalmente um relevo entalhado e algumas vezes uma escultura ou pintura - do
ícone central do mitraísmo: a tauroctonia ou a cena da morte do touro, conforme
descrito acima. Outras partes do templo eram decoradas com várias cenas e
figuras. Deveria ser implantado perto de uma fonte ou curso d'água ou, na falta
destes, de um poço. Havia centenas, talvez milhares, de templos mitraícos no
Império Romano.
Os
adeptos de Mitra não se contentavam com um misticismo contemplativo. O seu
culto encorajava a ação e um grande rigor moral. Para os soldados, a
resistência ao mal e às ações imorais representavam uma vitória tão importante
quanto as militares.
Reuniam-se,
em pequenos grupos, unidos e solidários pelo ritual iniciático. Partilhavam o
banquete sacramental com os deuses e finalizavam com uma aliança entre o sol e
Mitra. O repasto, sobre os despojos de um touro, era seguido de um sacrifício,
muitas vezes de um touro, ou de animais simbolizando o touro: cabras, javalis
e/ou galináceos.
Consagrava-se
o pão e a água, bebia-se o vinho que simbolizava o sangue do touro e comia-se a
carne. O processo da iniciação mitraíca requeria a subida simbólica de uma
escada cerimonial com sete degraus, cada um feito de um metal diferente para
simbolizar os sete corpos celestiais. Simbolicamente galgando esta escada
cerimonial através de sucessivas iniciações, o neófito podia atravessar os sete
níveis do céu. Os sete graus do mitraísmo eram: Corax (Corvo), Nymphus (
Noivo), Miles (Soldado), Leo (Leão), Peres (Persa), Heliodromus (Corrida do
Sol) e Pater (Pai); cada grau era protegido por um planeta (na cosmologia da
época): Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter, a Lua, o Sol e Saturno. Cada
dignitário apresentava a vestimenta e a máscara correspondente ao seu grau.
Como todo rito mitraíco a estrutura hierárquica era setenária. Os adeptos
tinham a sua divisão de papéis: o chefe (pater), o papel de Mitra, o heliodromo
(sol), o corvo apresentavam as carnes e as bebidas aos convivas dentro de uma
ordem hierárquica. A carne era assada sobre os altares dentro da concepção do
sacrifício do mundo greco-romano.
Os
rituais iniciáticos constavam da admissão dos fiéis por "inductio".
Antes de serem admitidos, os candidatos eram interrogados, sondados, informados
num local distinto do templo. Em seguida, eram submetidos a uma série de
provas, nus e com os olhos vendados, marchavam às apalpadelas diante de um
mistagogo para finalizar se ajoelhando diante de um personagem que portava uma
tocha diante de seus olhos. A seguir, com as mãos atadas às costas, colocavam
um joelho no chão ao mesmo tempo que um sacerdote cingia-lhes a cabeça com uma
coroa. No final, prostravam-se como mortos. Tudo isto faz parte da tipologia iniciática
das sociedades secretas em geral: olhos vendados, resistência física, morte
simbólica, etc.
Reprova-se,
nos adeptos de Mitra, a propensão aos sacrifícios humanos. Tal suposição advém
de se ter encontrado, nos diversos Mithrae, restos de esqueletos humanos.
Apesar
de todos os estudos antigos e modernos, conhece-se mal a "teodicéia"
mitraíca. Sabe-se, contudo, que os "mistérios" da Antigüidade revelam
um mito ou uma história santa que legitima a liturgia. É uma certa explicação
do Mundo e da passagem do homem sobre o mesmo que dá toda a força aos
"mistérios", sejam eles de Mitra, de Elêusis, em suma de quase todos.
A religião de Mitra se independentizou de suas origens orientais, agindo como
um imã que atraiu diversos aportes: gregos, babilônicos, romanos etc. Finalizou
como um Deus adaptado ao Império Romano, explicando assim o seu sucesso. Uma
das grandes ironias da história é o fato de que os romanos terminaram por
adorar um deus de um de seus maiores inimigos políticos: os persas. O
historiador romano Quintius Rufus assinala no seu livro História de Alexandre
que antes de ir batalhar contra os "países anti-mitraícos" de Roma,
os soldados persas oravam a Mitra pela vitória. Sem embargo, tendo as duas
civilizações inimigas estado em contato de conflito aberto ou latente por mais
de mil anos, os adoradores de Mitra migraram dos persas, através do frígios da
Turquia, até os romanos.
Numa
análise simbólica final, o culto de Mitra revela uma história do Mundo. Saturno
(ou Cronos, representando o Tempo) reinava soberano sobre o Mundo, quando
entregou a Júpiter o raio, uma arma letal que serviu para derrotar os gigantes
e gênios do mal. Alguns autores hipotetizam que este gênio do mal poderia ser o
Oceano que cobria a Terra.
Mitra,
Deus petrógeno, não descende aqui do Céu, pois surge miraculosamente de uma
rocha com um barrete asiático, tendo em uma das mãos uma tocha luminosa e na
outra, a adaga. Pastores assistem e ajudam este nascimento. Mitra, em seguida,
é encontrado junto de uma árvore ceifando o trigo. Depois é visto atirando com
um arco sobre uma parede rochosa onde jorra uma fonte que sacia os pastores.
Alguns autores concluem que as forças do mal (Oceano?) tentaram aniquilar os
humanos pela fome e pela sede e que Mitra, salvador dos homens e Deus protetor,
interveio para os alimentar e saciar sua sede, não só dos homens como dos
rebanhos. Nota-se, também, que o papel "justiceiro" das tradições
asiáticas não desapareceu, pois Mitra vem em socorro do Mundo para fazer
respeitar a Lei Divina.
Começa,
agora, a perseguição ao Touro. O touro está em conjunção com a lua, seus dois
chifres formam o crescente. O touro contem os elementos vivos (o esperma do
touro purificado pelo raio da lua produzirá os espécimens animais). Mitra tem a
missão de subtrair estas forças vivas das tentações maléficas. O touro se
refugia numa construção mas dois pastores ateiam fogo ao local. Mitra alcança o
animal, agarra os seus cornos e consegue cavalgá-lo. Depois, prende as patas
traseiras do animal, arrasta-o até a gruta onde um corvo, mensageiro do Sol,
impõe-lhe a tarefa de matar o animal insubmisso. A morte do touro atrai uma
serpente e um cachorro que se apressam em sugar o sangue que jorra da ferida
enquanto um escorpião (algumas vezes um caranguejo ou um 'câncer') fisga os
testículos da vítima para aspirar sua força vivificante.
Cumont
afirma que espigas de trigo saem da ferida, juntamente com o sangue que escorre
da calda do touro. Do corpo da vítima moribunda nascem as ervas e as plantas
salutares... De sua medula espinal germina o trigo que dá o pão, de seu sangue,
a vinha que produz a beberagem sagrada dos mistérios.
É
após a morte do touro que um conflito se abate entre Hélio e Mitra. O Sol,
ajoelhado diante da tauroctonia, perde sua prerrogativa de astro soberano.
Mitra torna-se o verdadeiro Sol Invictus que vem salvar a criação. O Sol
reconhece a preeminência de Mitra pois se faz iniciar no grau de Soldado
(Miles).
III - O
Cristianismo Triunfante
O
fim do mitraísmo coincide com o seu zênite no século III d.C. e vem acompanhado
da entronização do cristianismo como religião do Império Romano. Como vimos, o
mitraísmo sofria o passivo de praticar uma liturgia elitista em pequenas
sociedades secretas na qual as mulheres eram excluídas. Não se propunha ser uma
reli-gião de massa, aberto a todos, como o cristianismo. Era uma religião
otimista e Mitra teve o grande defeito de não ter morrido para salvar o mundo.
Como
os persas eram inimigos hereditários do Império Romano, os cristãos fizeram de
tudo para ligar o mitraísmo a uma religião "inimiga", persa por
excelência, pois os romanos não deveriam adorar um deus importado do
adversário. Apesar de tudo parece que Constantino manifestou uma certa simpatia
pelo mitraísmo, principalmente na sua versão de "Sol invictus".
Quando este primeiro imperador cristão colocou todas as religiões pagãs na
clandestinidade, poupou os mitraístas pois estes possuíam muita influência
junto aos militares que eram o cimento do Império. O 'punctus saliens' no qual
os cristãos atacavam os mitraístas era a sua propensão aos sacrifício animais.
Quando estes sacrifícios foram interditados, bloqueou-se um dos fundamentos
vitais do culto mitraíco.
O
combate mortal entre o cristianismo e o Mitra pagão pode ser lido nos escritos
de Tertuliano (160-220 d.C.) ao afirmar que esta religião utilizava
indevidamente o batismo e a consagração do pão e do vinho. Dizia, ainda, que o
mitraísmo era inspirado pelo diabo que desejava zombar sobre os sacramentos
cristãos com o intuito de levá-los para o inferno. Não obstante, o mitraísmo
sobreviveu até o século Vº em remotas regiões dos Alpes entre as tribos dos
Anauni e conseguiu sobreviver no Oriente Próximo até os dias de hoje.
No
curto reinado do imperador Juliano, sobrinho de Constantino, Gibbon afirma que
se assistiu a um retorno temporário ao mitraísmo, tendo este Imperador se
reconhecido até mesmo como adepto e chegando a construir um Mithraeum nos
calabouços de seu palácio em Constantinopla. Seguiu-se um período de tolerância
quando, sob o reinado de Teodósio (375-395), o cristianismo tornou-se religião
de Estado e o paganismo foi definitivamente interditado. O mitraísmo sobreviveu
em Roma até 394 sendo que a Basílica de São Pedro foi construída sobre o local
do último culto mitraíco: o Phrygianum. A partir daí, o cristianismo construiu,
boa parte de seus templos, acima de cavernas que continham Mithrae, seja em
Roma seja nas províncias do Império. A catedral de Canterbury e a de São Paulo
em Londres, o mosteiro do Monte Saint-Michel e algumas catedrais em Paris estão
construídas sobre antigos Mithrae em ruínas.
Os
pontos comuns entre o cristianismo e o mitraísmo são inúmeros. O nascimento de
Cristo é anunciado por uma estrela assim como o de Mitridate Eupator. Ambos são
nascidos de uma Virgem Imaculada que toma o nome de Mãe de Deus. A caverna, a
gruta são os locais de nascimentos tanto de Cristo quanto de Mitra. A presença
de pastores e de seu rebanho também estão presentes em ambos os nascimentos. A
gruta de Belém é prenhe de luz e Mitra é um deus solar. Além do mais, o ouro,
símbolo do Sol, tem uma importância crucial na liturgia cristã. Deus é Amor mas
também Luz. O nascimento dos dois deuses foi a 25 de dezembro, solstício de
Verão no Hemisfério Norte. Sabe-se que Cristo não teria nascido no dia 25 e
que, somente com o fim do mitraísmo, a Igreja Cristã, "cristianizou"
o dia como a festa do Natal. Tanto Cristo como Mitra eram castos e celibatários.
Todas as duas religiões são fundadas sobre um sacrifício salvador do Mundo, mas
com a morte de Cristo, o cristianismo tira a sua vantagem e sua superioridade.
A morte do Touro encontra um símile na luta de São Jorge com o dragão. A
vontade de neutralizar as potências do mal, a guerra entre as duas potências e
a vitória do Bem. A consagração do pão e do vinho estão presentes entre os
cristãos e os iniciados de Mitra. No grau de Soldado (Miles), o iniciado é
marcado com uma cruz de ferro em brasa sobre a fronte. A imortalidade da alma e
a ressurreição final. As igrejas antigas possuem criptas subterrâneas que
evocam os templos mitraícos. A fraternidade e o espírito democrático das
primeiras comunidades cristãs se assemelham muito ao mitraísmo. A fonte jorrando
da rocha, a utilização de sinos, os livros e as velas, a água santa e a
comunhão, a santificação do Domingo (fora da tradição judaica do Sábado), a
insistência numa conduta moral, o sacrifício ritual, a angeologia, a teologia
da luz, dualidade deus-diabo, o fim do mundo e o apocalipse são também comuns
em ambas as religiões.
Outro
símile interessante seria entre Mitra e Papai Noel. Vestimentas vermelhas e
barrete frígio são comuns a ambos como também as velas incrustadas em árvores
(de Natal) nas cerimônias natalinas.
IV - Sobrevivência
Mitraíca e sua Influência na Maçonaria
Encontram-se
traços mitraícos nas diversas gnoses e principalmente nas heresias dualistas
cristãs. O esoterismo do gnosticismo cristão foi muito influenciado pelas
religiões egípcias e iranianas. Os segredos, revelados aos
"Perfeitos", referiam-se aos mistérios da ascensão e descida de
Cristo através dos Sete Céus habitados pelos anjos. Autores modernos chegam a
afirmar que o gnosticismo é um fenômeno pré-cristão de origem iraniana que
poluiu o cristianismo nascente. A influência dos cultos iranianos e
especificamente mitraícos sobre a gnose de Mani são insofismáveis. Desde o
século III d. C., o segredo mitraíco força as portas da barca de São Pedro. A
pressão deste dualismo maniqueísta percorre toda a Idade Média. O bogomilismo
da Europa Oriental inicia a sua trajetória a partir do século X colocando Satã
no lugar de Deus, infligindo um poder considerável sobre as heresias Cátaras e
Albigenses no alvorecer do século XII na Europa Ocidental. Estas heresias
gnósticas cristãs professavam a asserção de que Deus não teria criado o Mundo,
estando este sob o domínio de Satã - assimilado ao demiurgo Yahvista. O
verdadeiro Deus estaria tão distante da Terra onde se dão estes embates entre o
Bem e o Mal. Apesar disto teria enviado Cristo para salvar os homens ao
mostrar-lhes o método da libertação.
Outra
difusão de um mitraísmo mitigado estaria entre os Cavaleiros do Templo, pois
estes sofreram a influência dos maniqueus. No culto a Baphomet, também
conhecido como o filho de Mitra, havia um ícone representado por um Touro
ornado com uma chama entre seus cornos...
O
culto de Mitra enquanto sociedade iniciática tem certas semelhanças com a
maçonaria propriamente dita. A fraternidade entre os membros, a exigência de
uma conduta moral, a vontade de defender, de maneira ativa e não contemplativa,
o bem e a virtude são, ao mesmo tempo, padrões maçônicos e mitraícos. A defesa
da ordem política e social, o culto exclusivamente masculino são também pontos
comuns. Ritualisticamente encontram-se os seguintes traços: a mania pelo número
7, a existência de graus iniciáticos, as velas, os altares, a Luz, as palavras
de passe, etc. O templo maçônico pode ser visto como uma gruta mitraíca ou se
não se quiser ir muito longe o símile poderá ser feito com a câmara de
reflexões; o teto estrelado do templo tem profunda semelhança com os mitraícos.
Os templários, a tradição judaica e cristã foram os grandes transmissores de
símbolos mitraícos. Os dois São Joães - de Inverno e de Verão - tem profunda
vinculação com os dois pastores da tauroctonia. O sacrifício ritual fundador de
Hiram está muito próximo do sacrifício ritual do Touro. O corvo no acampamento
militar, encontrado nos altos graus do escocesismo, é uma prova cabal da
influência mitraíca.
Outro
símile estaria no mais baixo grau de iniciação - o grau de Corvo (Corax) -
simbolizava a morte do novo membro, o qual deveria renascer como um novo homem.
Isto representava a fim de sua vida como um não-crente (ou descrente) e
cancelava pretéritas alianças de outras crenças inaceitáveis. Curioso salientar
que o título de Corax (Corvo) originou-se com o costume zoroástrico de expor os
mortos em elevações funerárias para ser comido pelas aves de rapina. Este
costume continua, até os dias de hoje, sendo praticado pelos Parsis da Índia,
descendentes dos persas seguidores de Zaratustra.
O
simbolismo sexual, encontrado em diversos rituais maçônicos, poder ter um
paralelo com o touro, pois este era uma óbvia representação da masculinidade
pela natureza de seu tamanho, de sua força e de seu vigor sexual. Ao mesmo
tempo, o touro simbolizava as forças lunares em virtude de seus cornos e as
forças telúricas em virtude de ter as quatro patas assentadas no solo. O
sacrifício do touro simboliza a penetração do princípio feminino pelo
masculino, a vitória da natureza espiritual sobre a animalidade, tendo um
paralelo com as imagens simbólicas de Marduk destruindo Tiamat, Gilgamesh
aniquilando Huwawa (grafia de Eliade), São Miguel dominando Satã, São
Jorge vencendo o dragão, o Centurião lancetando Cristo e, por que não nos
referirmos a um ícone moderno: Sigourney Weaver lutando contra o Alien?
Finalmente,
o mitraísmo era, concomitantemente, um culto dos mistérios e uma sociedade
secreta. Tal como os ritos de Deméter, Orfeu e Dionísio, os rituais mitraícos
admitiam candidatos em cerimônias secretas cujo significado era do conhecimento
somente do iniciando. Como todos os outros ritos de iniciação
institucionalizados do passado e do presente, este culto dos mistérios permitia
aos iniciados ser controlado e posto sob o comando de seus líderes. Ao ser
iniciado, o neófito tinha que provar sua coragem e devoção nadando através de
rio caudaloso, escalando um rochedo íngreme ou pulando através das chamas com
suas mãos atadas e os olhos vendados. Ao iniciado era também ensinado o segredo
das palavras de passe mitraícas que eram usadas para identificação mútua como também
era auto-repetida freqüentemente como um mantra pessoal.
V - Como seria um
Mundo Mitraíco à Guisa de Conclusão
O
legado mitraíco resulta em comportamentos usados ainda hoje em dia, tal como o
apertar as mãos e o uso da coroa pelo monarca. Os adoradores de Mitra foram os
primeiros no Ocidente a pregar a doutrina do direito divino dos reis. Foi a
adoração do sol, combinada com o dualismo teológico de Zaratrusta, que
disseminou as idéias sobre as quais o Rei-Sol Luis XIV (1638-1715) na França e
outros soberanos deificados na Europa mantiveram o seu absolutismo
monárquico.
Alguns
estudiosos afirmam que, durante o IIº e o IIIº século d.C., nunca a Europa
esteve tão perto de adotar uma religião indo-ariana quando Diocleciano,
oficialmente, reconheceu Mitra como o protetor do Império Romano, nem mesmo
durante as invasões muçulmanas.
Especulações
teóricas anglo-saxãs hipotetizam que se um golpe de estado, dado pelos
centuriões adoradores de Mitra, tivesse impedido Constantino de estabelecer o
cristianismo como a religião oficial do Império, o mitraísmo poderia
possivelmente sobreviver através dos séculos seguintes com a assistência
teológica da heresia maniquéia e seus epígonos, assumindo "ipso
facto" que os ensinamentos de Jesus teriam, de alguma maneira, sido
simultaneamente anulados e, talvez, com um número crescente de crucificações.
Esta ausência do cristianismo, devido à continuação do mitraísmo no Ocidente,
teria obstado o crescimento do Islã no século VII e a violência das Cruzadas
necessariamente não teria ocorrido. Assumindo, ainda, que o Islã não teria,
assim, conquistado religiosamente a Pérsia, a adoração de Mitra poderia ter
continuado no panteão de Zaratrusta. Como conseqüência, o mitraísmo poderia ter
penetrado com mais força nos panteões da Índia e da China e, possivelmente,
teria aportado nos países do Extremo-Oriente.
Continuando
com a especulação saxã que resultou na "lenda negra" da dominação
espanhola no Novo Mundo, Colombo realizou os seus descobrimentos em pleno
período da Inquisição, fenômeno este representativo da culminância de mais de
mil anos de uma das maiores religiões monoteístas semítica - o cristianismo. Se
o mitraísmo tivesse sobrevivido o milênio até o ano de 1492, os povos indígenas
das Américas poderiam ter sido expostos à adoração de Mitra no lugar dos
missionários católicos. Imaginaríamos, assim, o Taurobolium - ritual de
regeneração ou sacrifício do touro, no qual o sangue do animal era derramado
sobre o iniciado - sendo sido transposto e sincretizado com o ritual da caça do
búfalo dos índios das planícies do Oeste americano e a cerimônia do sacrifício
dos maias, incas e astecas, e provavelmente, estes impérios não teriam sido
aniquilados pelos brutais conquistadores europeus em nome do Rei e de Cristo.
Se
non è véro, è bene trovato...
VI
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