*Pasquale
Cipro Neto – Fonte: Folha S. Paulo
Pasquale Cipro Neto |
Faz
algum tempo que não pego no pé dos meus colegas de jornal, rádio, tevê e
internet, daqui e dali. Não foi por falta de assunto, que isso não falta nunca.
A coisa continua braba, muito braba, brabíssima.
Na
tevê, por exemplo, insiste-se em definir "crime doloso" como
"aquele em que há intenção de matar", o que deixa de cabelos em pé
quem lida com o direito (e com a língua). Vejamos o que diz o
"Houaiss" sobre "dolo": "Em direito penal, a
deliberação de violar a lei, por ação ou omissão, com pleno conhecimento do que
se está fazendo".
Percebeu
a sutileza, caro leitor? Você certamente já ouviu ou leu declarações de
delegados de polícia que consideram doloso o comportamento de quem, embriagado,
dirige veículos e causa acidentes com mortos e/ou feridos. Leia mais
Para
esses delegados, esses cidadãos irresponsáveis sabem que, quando ébrios ao
volante, podem mutilar ou matar, o que justifica o enquadramento no dolo, mas é
claro que não se pode garantir que o/a bebum que invade a calçada e mata duas
pessoas que lá estavam tinha a intenção de matar exatamente aquelas duas
pessoas, que provavelmente o/a bebum nunca vira.
Outro
ponto em que muitos redatores continuam insistindo é o da falta de clareza
resultante da ordem em que são dispostos os termos das orações ou as próprias
orações. Veja este exemplo, estampado na capa de um site: "Clima de
revolta e surpresa onde um dos suspeitos de ter matado torcedor mora".
Elaiá!
Esse
título se referia ao bárbaro episódio dos vasos sanitários atirados da
arquibancada do estádio do Santa Cruz (o Arruda, no Recife). É muito comum nas
Redações a máxima de que a ordem boa é a direta ("Escreva sempre na ordem
direta!"), o que equivale a antepor o sujeito ao verbo, norma cumprida no
título que acabo de citar, já que o sujeito da forma verbal "mora" é
"um dos suspeitos de ter matado torcedor". Como se vê, o longo
sujeito foi posto antes do verbo.
Muito
bem: "norma" cumprida, compreensão dificultada. Xô, cintura dura! Xô,
engessamento! Xô, cumprimento estrito e restrito de "normas"
discutibilíssimas! O caro leitor já percebeu que, no caso em tela, a
anteposição do verbo ao sujeito torna muito mais rápida a assimilação da
mensagem? Vamos ver como fica: "Clima de revolta e surpresa onde mora um
dos suspeitos de ter matado torcedor". Que tal? Desnecessário comentar,
não?
Antes
que alguém diga que o redator talvez tenha precisado adequar-se ao espaço, ao
tamanho das linhas, digo que a manchete ocupava duas linhas: a primeira
terminava em "um dos", o que significa que era perfeitamente possível
jogar para baixo "um dos" e levar para cima "mora".
Lembre-se de que estamos falando de sites, de internet, em que a questão do
espaço é bem mais maleável do que num jornal de papel.
O
problema mesmo é o gesso, o maldito piloto automático, o que talvez se explique
pela falta de contato com outras sintaxes, além da "direta". A
solução? Ler, ler, ler...
Ler
o quê? Tudo, sem preconceito de época, estilo etc. Um bom remédio para aprender
a extrair o máximo das diversas possibilidades de ordenar os termos é ler os
autores barrocos, mestres insuperáveis na arte da inversão. Assim, conhecem-se
as duas possibilidades, o que certamente facilita a opção por uma ou outra
ordem. É isso.
*Pasquale Cipro Neto é um professor de língua portuguesa e apresentador de televisão brasileiro, também conhecido apenas pela alcunha de Professor Pasquale, com a qual se apresenta.
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