Quando o abuso era a regra

(*) Por Nikelen Witter - Sul 21
Falar de abuso infantil é necessário. E falar às claras, sem meias palavras, sem coisas escondidas. É um tema indigesto, daqueles que, em alguns círculos, basta mencioná-lo para causar arrepios. Muitos vivem a fantasia de não pensar sobre o assunto, outros – mães e pais zelosos – podem sofrer em imaginar que, talvez, não consigam ser vigilantes o suficiente. Contudo, as duas posturas estão encolhidas diante da questão mais urgente: o abuso é um fato. Ele existe. E não é de agora. “Agora” significa apenas o momento em que algumas pessoas (ou, espera-se, muitas) começaram a preocupar-se diretamente com ele. Em que organizações não governamentais e estatais passaram a querer retirar da normalidade do silêncio o que é uma prática de séculos. Leia mais
Nós – que assistimos, lemos, ouvimos, sabemos das notícias que envolvem abusos – ficamos indignados e assustados. Olhamos para o rosto dos nossos filhos e os pensamos em segurança. No entanto, no fundo, sabemos que nosso fingimento em viver num mundo protegido é apenas isso: fingimento. Da mesma forma que fingimos que nosso cuidado deve ser apenas com as crianças cuja tutela nos é imediata. Minha impressão – e admito que posso estar enganada – é que nenhuma criança estará completamente segura, enquanto todas não estiverem. Falo de todas mesmo. Das conhecidas, das desconhecidas, das anônimas, das que são ou serão famosas. Todas estas que andam pelas ruas e que estão imersas no perigo do silêncio, do não se fala, do não se conta, da vergonha que se lhes impõe. Engana-se quem pensa que nossa responsabilidade termina em nossos filhos e filhas. Quando chamamos pela sociedade, chamamos a quem de fato? E, entretanto, poucos querem se aperceber que essa “sociedade” nos olha do espelho. Poucos querem contemplar com a devida atenção ao aluno quieto demais ou àquele que agride por nada (peço desculpas por, limites de texto, referir somente aos estereótipos), ou para a criança do vizinho que passou a bater no seu filho durante as brincadeiras, como um cão raivoso que fica obcecado por um único ser. Limitamo-nos a livrar os nossos e fingir que tudo ficará bem.

Falar de abuso infantil é necessário porque ainda há quem culpe as crianças e os jovens. Ainda há quem deboche. Ainda há quem acredite que a natural curiosidade dos mais jovens sobre sexo deve ser punida. Porque ainda há que ache que uma criança ou adolescente vivendo em situação de risco – coisas que envolvem drogas, prostituição, o mundo da rua – estão “expondo-se” e, portanto, não merecem nossa intervenção, nosso auxílio ou mesmo a força da lei que, para as classes superiores – quando aviltadas – é aplicada com rigor.
Para falar de abuso infantil é preciso, antes, que se deixe de acreditar que ele nasceu ontem. É necessário que os argumentos sobre a falta de moral, a dissolução dos costumes, da família, da sociedade e sobre a perda dos parâmetros rígidos de comportamento sejam silenciados e que se perceba que isso pouco ou nada tem haver com a questão. Mesmo os argumentos referentes aos padrões econômicos e escolares precisam de necessária relativização. Por quê? Porque eles não explicam de todo, porque eles não são suficientes, porque, numa boa quantidade dos casos, o abuso os ultrapassa: ele existe em famílias ricas da mesma forma que nas pobres, e também nas que tem acesso à escolarização.

Ao falar de abuso infantil, precisamos lembrar que a própria infância é recente. Que nunca amamos tanto nossos filhos quanto agora e que nossa proteção a eles tem décadas contadas. Sendo assim, nossa luta não é contra o abusador, mas contra a cultura que o informa, que nos informa, que permite nosso silêncio, nosso deboche, nossa culpabilização das vítimas. Nossa luta é contra a cultura do abuso. E, para isso, nada melhor que compreendê-la e conhece-la. Há muito para ler, com certeza, por essa razão, indico somente o que creio ser o mais básico.

Embora já tendo sido alvo de muitas revisões, ainda confio que a leitura do clássico História Social da Criança e da Família, do historiador francês Phillipe Ariès, é fundamental para o conhecimento da época da vida – historicamente circunscrita com diferentes características – que é a infância. Trata-se de uma leitura tremendamente esclarecedora, em especial, acerca da familiaridade, em outras épocas, das crianças com o sexo. E, imagino, estas informações podem ser preciosas na hora de se pensar as redomas em que colocamos os jovens, sem perceber que elas, de fato, são apenas gaiolas, e das mais permeáveis.

Minha outra indicação – e esta, de fato, exigirá algum estômago por parte dos leitores – é História do Estupro, obra sensacional de Georges Vigarello. Nela, o pesquisador mapeia o processo pelo qual a violência sexual – contra mulheres, crianças e homens – passou a ser vista com horror. Lentamente, o que antes era natural e permitido passa a ser criminalmente tipificado. Contudo, como no bom sexo há gozo, sempre se usou da dúvida sobre a vítima (ou melhor, sobre o prazer da vítima) para desqualificar a gravidade do crime. Na maioria das vezes, estes casos apenas levavam à sentença quando a vítima morria, ficava aleijada ou destruída, ou quando o abusador era reincidente, não duas ou três vezes “que ninguém é de ferro”, mas várias vezes.

Por fim, mas de forma nenhuma menos importante: História das Crianças no Brasil, organizado pela historiadora Mary Del Priore. Cada capítulo deste livro mergulha no cotidiano de algum grupo de crianças do passado e, creio, o leitor compreenderá em suas páginas o que quero dizer com cultura do abuso sexual infantil. O primeiro capítulo, dedicado à vida dos grumetes – meninos entregues para servirem nos navios e com quem os marinheiros mais velhos tradicionalmente “se aliviavam” – dá uma amostra do que era a vida de uma criança há 500 anos. Essa receita de ação, porém, não ficou morta no passado longínquo. Pelo contrário, repetiu-se, muito provavelmente, nas senzalas, e também nas casas grandes; na criadagem “adotada entre os expostos” e nos quartéis, internatos e fábricas. A moral burguesa, que cresceu no sentido de resguardar a virgindade feminina, trabalhou para colocar o abuso das meninas mais dentro de casa, mais familiar. Contudo, os meninos não se tornaram menos vítimas dele. Somente foram amordaçados ainda mais, pelas regras de masculinidade e vergonha.

Não existem soluções fáceis, menos ainda quando a cultura do abuso informa que esta é a forma de submeter alguns ao poder de outros. Talvez, estejamos enganados em pensar nisso apenas como um jogo pervertido de desejo e não como uma estrutura de empoderamento, que está na base de nosso complexo cultural. Nossa ilusão pode estar no fato de lidarmos com o abuso como se ele se tratasse apenas de sexo. Há sexo, claro. Mas também há indústria de exploração, de tráfico, e há o poder exercido sobre os mais frágeis. Há dinheiro circulando na troca por estes corpos sem defesa. E, no fundamento de tudo isso, há um contínuo estímulo a que estas coisas se perpetuem. Fingir que estamos seguros, que aquelas crianças que chamamos de nossas estão seguras (quando todas as outras não estão) é tão somente isso: fingimento.

*Nikelen Witter é historiadora, professora e escritora.

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