Livro que coloca em dúvida suicídio de Van Gogh revela alquimia entre arte e vida

'Van Gogh: The Life', de Steven Naifeh e Gregory White Smith, tem chamado a atenção porque traz nova versão sobre a morte do pintor, mas vai além
Estadão.com
Autorretrato de 1888. Influência do pontilhismo
de G. Seurat, gravura japonesa e imagens oníricas
Ele tinha "um sol na cabeça e uma tempestade no coração": tais palavras, usadas para descrever o pintor francês Eugène Delacroix, foram memorizadas por Vincent van Gogh e poderiam facilmente ser aplicadas ao próprio holandês.

Da sua turbulenta vida emocional, repleta de solidão e desespero, emergiu - numa única década incandescente - uma profusão de pinturas encantadoras e vibrantes que realizaram a ambição dele de criar uma arte capaz de proporcionar consolo aos enlutados e redenção aos desesperados. Imagens que pudessem "dizer algo reconfortante, assim como a música é reconfortante - algo que invoque o eterno": estrelas fosforescentes rodopiando num céu noturno sob o luar amarelado; um conjunto de lírios radiantes florescendo num verdejante jardim iluminado pelo sol do Mediterrâneo; uma revoada de corvos batendo suas asas sobre a vastidão dourada dos campos de trigo sob um céu tempestuoso.

Na sua nova e magistral biografia, Van Gogh: The Life, Steven Naifeh e Gregory White Smith proporcionam ao leitor uma viagem guiada pelo mundo pessoal e pela obra do pintor holandês, esclarecendo a evolução da sua arte ao mesmo tempo em que articulam uma teoria - certamente controvertida - para explicar a morte dele aos 37 anos. Leia Mais


Embora o suicídio à bala já tenha se tornado parte do mito do artista torturado que envolve e disfarça Van Gogh, Naifeh e Smith destacam que há problemas nesta hipótese - como o ângulo do disparo, o desaparecimento da arma e de outras provas, e a longa caminhada que Van Gogh, já ferido, teria de fazer para voltar ao seu quarto. Em vez disso, eles propõem uma intrigante teoria alternativa, da qual os primeiros rumores foram ouvidos pelo historiador da arte John Rewald na década de 30 durante uma visita a Auvers, pequena cidade francesa onde Van Gogh morreu.

De acordo com Naifeh e Smith, um agressivo adolescente chamado René Secrétan, que gostava de vestir uma fantasia de caubói comprada depois de assistir ao espetáculo do Velho Oeste trazido por Buffalo Bill, foi provavelmente a fonte da arma (vendida ou emprestada a ele pelo encarregado da estalagem local). Secrétan e seus amigos costumavam provocar o excêntrico Van Gogh, e os autores sugerem que tenha havido algum tipo de encontro entre o pintor e os rapazes no dia do disparo. "Depois que a arma foi tirada da trouxa de René", escrevem eles, "qualquer coisa pode ter ocorrido - seja de maneira intencional ou acidental - entre um adolescente irresponsável cheio de fantasias do Velho Oeste, um artista inebriado que nada sabia a respeito de armas, e uma pistola antiquada com tendência a apresentar defeitos".

Os autores argumentam - de maneira não inteiramente convincente - que Van Gogh, profundamente infeliz, "recebia a morte de braços abertos", e Secrétan pode ter proporcionado a ele "a fuga pela qual o pintor ansiava sem ser capaz de ou estar disposto a dar cabo de si mesmo, depois de passar a vida criticando o suicídio como ‘covardia moral’".

Não há provas claras que corroborem esta teoria, como é afirmado, discretamente, num apêndice à biografia do pintor. E é assim que as coisas deveriam ser, já que o verdadeiro motivo para se ler este livro nada tem a ver com as especulações a respeito da morte de Van Gogh, e sim com a extensa crônica que estas páginas nos trazem da vida e da arte dele, e da alquimia entre ambas. O retrato mais amplo de Van Gogh que emerge deste livro já é conhecido por aqueles que leram biografias anteriores do pintor - principalmente o sucinto estudo de David Sweetman, publicado em 1990 -, mas ganha corpo com detalhes tão profusos quanto as pinceladas de uma de suas obras mais tardias.

Enquanto a biografia de Jackson Pollock, escrita e publicada pelos mesmos autores em 1989 e que inexplicavelmente ganhou o Prêmio Pulitzer, recorria a um freudianismo reducionista para tentar explicar a arte daquele pintor, este volume se esforça ao máximo para evitar o estabelecimento de elos simplistas entre a galvânica obra de Van Gogh e as suas dificuldades emocionais. (Os autores parecem concordar que seu ocasional comportamento incomum era provocado por um tipo de epilepsia, assim como concluiu um dos médicos de Van Gogh.) Em vez disso, Smith e Naifeh examinam disciplinadamente o desenvolvimento de suas ideias, suas técnicas, sua notável capacidade de aprender por osmose as lições dos demais pintores e transformá-las em suas próprias inovações.

Ao escrever este livro (e preparar um site complementar com anotações), os autores recorreram muito ao material de arquivo e aos estudos do Museu Van Gogh, de Amsterdã, e principalmente a uma nova edição das cartas de Van Gogh, que levou 15 anos para ser preparada e foi publicada em 2009. Como ocorreu com biógrafos anteriores, a capacidade deles de retratar de maneira convincente a vida interior de Van Gogh depende muito dessas notáveis cartas - uma correspondência que não apenas nos proporciona uma crônica dos altos e baixos do seu quadro maníaco, do seu processo criativo e do seu complexo relacionamento com o irmão, Theo, como também atesta seus imensos dotes literários e sua determinação férrea de aprender e crescer como artista.

Valendo-se dessas cartas e dos desenhos e pinturas de Van Gogh, Naifeh e Smith nos proporcionam um minucioso mapa anotado daquilo que permeava sua filosofia e sua arte. Por mais que pudesse ser errático e difícil, por mais que sofresse de colapsos nervosos e depressões, Van Gogh estava longe de ser o maluco consagrado pelo mito. Sua arte e sua sensibilidade foram moldadas pela sua ávida leitura de autores como Dickens, Shakespeare, George Eliot e Zola, assim como sua admiração por uma sucessão de pintores e o cada vez maior museu de imagens que ele mantinha na cabeça informaram a evolução da sua visão e da sua técnica enquanto pintor.

As primeiras pinturas de Van Gogh, retratando camponeses, foram inspiradas em parte por Millet, e aspiravam, de acordo com os autores, "celebrar não apenas a união dos camponeses com a natureza", mas também "sua sólida resignação diante do árduo trabalho". Suas pinturas posteriores, usando uma paleta elétrica, deviam algo aos impressionistas, movimento ao qual Theo buscava atraí-lo na esperança de que Vincent pintasse mais paisagens e usasse cores mais vivas para produzir telas mais atraentes aos compradores.

Van Gogh aprendeu também com o pontilhismo de Seurat, com a primitiva simplicidade das gravuras japonesas e com a aceitação das imagens oníricas proposta pelos simbolistas. Smith e Naifeh traçam com destreza a trajetória das peregrinações de Van Gogh, evocando a intensa atmosfera de fermentação criativa da Paris dos anos 1880. Eles dissecam a maneira com a qual o inquieto, obsessivo e altamente contraditório intelecto de Van Gogh assimilava e transformava, faminto, filosofias, iconografias e até pinceladas díspares, e também a sua passagem da exploração do efeito da luz sobre as superfícies às escavações mais intensas da sua própria psique, das simples descrições da realidade a um estilo mais expressionista que recriaria o mundo como espelho do seu próprio "coração fanático".

No decorrer do caminho somos presenteados com vislumbres de como o uso - uma verdadeira ginástica - que Van Gogh fazia das cores refletia as constantes mudanças do seu humor: o perfurante amarelo de um vaso de girassóis saudando o sol que banhava a vida dele em Arles; a serenidade de uma nova paleta de violeta, lavanda e lilás que se esgueirava para dentro dos quadros dele enquanto o pintor estava no Asilo de São Paulo, em St. Rémy; os tempestuosos azuis e as perigosas nuvens, sugerindo uma visão ameaçadora da natureza, conjurada na tela tardia Trigal com Corvos.

Aquilo que Naifeh e Smith capturam de maneira mais poderosa é a extraordinária disposição de Van Gogh em aprender, em perseverar contra as dificuldades, em continuar pintando depois que os primeiros professores criticaram sua obra, quando uma facilidade natural parecia iludi-lo, quando suas telas não encontravam compradores. Havia uma tenacidade similar nos seus comoventes esforços para preencher o vazio emocional da sua vida: rejeitado por sua família burguesa, que o enxergava como um rebelde instável; sufocado nas suas tentativas de seguir seus impulsos religiosos e se tornar um pregador; manipulado pelas mulheres que desejava; ridicularizado pelos vizinhos, que o consideravam louco; prejudicado por um competitivo Paul Gauguin, com quem esperava forjar uma fraternidade artística.

O único elo contínuo na vida de Van Gogh era com o irmão Theo, um negociante de arte, que lhe proporcionava apoio emocional, criativo e financeiro. Os autores deste livro conseguem transmitir o amor e a exasperação sentidos por Theo em relação ao seu exigente e necessitado irmão, e também quanto Vincent temia a possibilidade de perder a devoção de Theo. E eles traçam o arco do intenso e tumultuado relacionamento entre os irmãos no decorrer dos anos, culminando na morte de Vincent em julho de 1890, seguida pela morte de Theo seis meses depois.

O anseio por elos emocionais que acompanhou Vincent van Gogh por toda a sua vida seria, é claro, finalmente transformado em duradoura realidade na sua arte. "O que desenho é aquilo que vejo com clareza", escreveu ele num momento em que começava a encontrar a própria vocação. No desenhar, prosseguiu ele, "posso falar com entusiasmo. Encontrei uma voz". / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

VAN GOGH: THE LIFE
Autores: Steven Naifeh e Gregory White Smith
Editora: Random House
(Importado, 953 págs., R$ 97,70)

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