Sobrevivente do Holocausto relembra perda de filho em ditadura argentina

Vladimir Hernández
Da BBC Mundo em Buenos Aires
Elegante, jovial, Sara Rus, 85, irradia uma alegria que contrasta com os horrores que viveu. "Gosto do que eu tenho na minha vida", diz "Depois de tudo que passei, preciso."

Sara sobreviveu ao Holocausto judeu durante a 2ª Guerra Mundial, recordado pelas Nações Unidas neste mês. Perdeu o pai no terrível campo de concentração nazista de Auschwitz, peitou oficiais alemães, roubou comida para sobreviver, e sobreviveu.

Ao fim da guerra, fugiu para a Argentina, o país latino-americano com a maior comunidade judaica na região, para onde foi contrabandeada através da fronteira com o Paraguai.

Quando Sara conseguiu estabelecer uma nova vida, ter os filhos que lhe haviam dito que não podia ter e virar uma página turva na sua história, mais uma campanha de extermínio ceifou a vida de um parente imediato: seu filho, Daniel, que em 1977 passou a engrossar a lista de cerca de 30 mil desaparecidos na repressão do governo militar argentino.

Conta sua história a quem lhe pede. "Para que não esquecer o que passamos", afirma. Leia mais


Guerra Sara tinha apenas 12 anos quando a 2ª Guerra Mundial estourou em 1939, filha única de uma família de classe média judia em Lodz, na Polônia.

A imagem que marcou o início do seu horror foi a de seu pequeno violino desfeito em pedaços nas mãos de um soldado alemão que fazia parte de um grupo que invadiu sua casa.

Antes vivendo em um confortável apartamento, pai, mãe e filha foram amontoados em um único quarto, onde passaram a viver na miséria. Em 1940, sua mãe ficou grávida e teve um bebê no gueto de Lodz – mas o filho morreu aos três meses de idade.

No ano seguinte sua mãe voltaria a ficar grávida, mas o segundo bebê seria morto por tropas alemãs logo no nascimento.

"A vida no gueto era terrível. Não só pelas condições, mas porque todo dia os alemães selecionavam pessoas para levá-las a outro lugar. Pessoas que nunca mais eram vistas", recorda.

Sara diz que a única coisa boa que aconteceu no gueto de Lodz foi ter conhecido Bernardo, que mais tarde se tornaria seu marido e pai dos seus filhos.

Sabendo que Sara tinha um parente que antes da guerra havia fugido para Buenos Aires, Bernardo prometeu à namorada que, se sobrevivesse à guerra, a encontraria na capital da Argentina no dia 5 de maio de 1945.

A data viraria um marco na sua vida.

Em 1944, todos os moradores do gueto foram levados para uma grande operação na estação de trens, foram transportados "como animais" para seu destino final: o hoje tristemente célebre campo de concentração de Auschwitz.

"Ao descer, os homens eram separados das mulheres. Não pude sequer dizer adeus ao meu pai", diz Sara. Nunca mais o viu.

Em Auschwitz, Sara e sua mãe foram submetidas a trabalho escravo. Quase não comia, o que aos poucos minava suas forças.

Meses mais tarde ambas foram trasladadas temporariamente a uma fábrica de aviões. "Eu não tinha força nem para levantar a broca", recorda Sara. Depois, foram para o campo de concentração e extermínio de Mauthausen.

Já no céu se viam batalhas aéreas entre aeronaves alemãs e aliadas. O fim da guerra estava próximo.

"Chegou um momento em que os alemães começaram a fugir da área. Alguns nos disseram para ir com eles, porque os americanos estavam chegando. Incrível!”, relata.

Quando os ianques finalmente chegaram, Sara pesava 27 quilos e sua mãe, 26. Eram a sombra do que costumavam ser.

"Os soldados nos viam e choravam. Passei três meses sendo alimentada com soro, porque não conseguia reter alimentos. Houve gente que morreu depois de comer, porque o corpo não agüentou (a comida)", disse.

Foi resgatada no dia 5 de maio de 1945 – a data que Bernardo havia combinado para se encontrarem em Buenos Aires.

O segundo extermínioDepois de passar por vários países da Europa, Sara, sua mãe e Bernardo finalmente chegam à Argentina, contrabandeados através do Paraguai, já que o então governo de Juan Domingo Perón não aceitava refugiados judeus.

Foram presos e ficaram detidos por várias semanas na cidade de Formosa, no norte da Argentina, até que Bernardo decidiu escrever – em polonês – a Eva Perón.

"Alguém deve ter traduzido a carta a Evita, porque logo recebemos uma resposta positiva dela e a permissão para ficar no país."

Sara se instalou em uma comunidade judaica em Buenos Aires.

Apesar de ter sido diagnosticada na Alemanha como impossibilitada de dar à luz, por conta de um acidente sofrido nos campos de concentração, Daniel nasceu em 1950. Cinco anos mais tarde, ela teve Natalia.

Formado em física nuclear, Daniel acabou trabalhando na Comissão Nacional de Energia Atômica. No dia 15 de julho de 1977, com o governo militar de Jorge Videla no poder, Daniel foi preso.

Anos depois, Sara descobriu que seu filho foi colocado junto com outros jovens em uma carroceria de caminhão.

Deduziu que o destino fora a Escola de Mecânica Naval, Esma, por onde cerca de 5 mil pessoas passaram. A maioria terminou morta.

"Seu pai (Bernardo) queria que ele saísse do país, mas Daniel não quis."

Na busca pelo paradeiro de seu filho, Sara se envolveu com as Mães da Praça de Maio e hoje é uma ativista de direitos humanos ativa e premiada.

Sua incrível história é contada através de lágrimas, dor e riso. Apesar do que viveu, transmite alegria, mesmo quando reconta os momentos mais sombrios de sua história.

Eu pergunto se ela se sente uma vítima de dois extermínios. "Como diz título do meu livro (uma obra de memórias lançada em 2007), sobrevivi duas vezes", responde Sara.

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