Haitianos descobrem que sonho de vida melhor pode virar pesadelo

Invasão de haitianos pela fronteira entre Brasil e Bolívia, em Brasiléia no Acre. Na foto, haitianos
reunidos na praça Hugo Poli, centro de Brasiléia, discutem problemas com a administração
do espaço onde ficam hospedados


BRASILEIA (AC) - Anoitece em Brasileia e centenas de haitianos se espalham na Praça Hugo Poli, uma das principais da cidade, em animados grupos. Uns ocupam a quadra, outros arriscam manobras na pista de skate, vários conversam sentados em bancos ou ao redor dos quiosques. Em minutos, o burburinho dá lugar a sorrisos e longos abraços. É a chegada de três mulheres, que acabam de descer de um táxi puxando malas de rodinhas, em cujas alças ainda estão presos os tíquetes de companhias aéreas. Uma delas é Rosina François, de 27 anos; sua história se encaixa como uma luva no sonho haitiano de morar no Brasil, ganhar um bom salário e, aos poucos, trazer a família.Leia mais

Rosina é mulher de Dominique Desne, 34 anos, que chegou ao país em novembro, pela fronteira do Acre, assim como centenas de outros haitianos, como O GLOBO revelou na última semana. Hoje, vive em Sorocaba, no interior de São Paulo. Funcionário de uma empresa de construção civil, ele trabalha como pedreiro, é registrado e mora num alojamento da firma no município vizinho de Votorantim. O salário é de R$ 1.100 por mês. Com horas extras, chega a R$ 1.700, suficiente para alugar uma casa para a família que, em breve, estará de novo reunida. Os próximos a chegar são os três filhos do casal, Loumensa, de 7 anos, Donalason, de 4, e Chenala, de 9.
- Vim porque vi que quem tinha vindo havia conseguido emprego para trabalhar - diz Dominique.
O sonho haitiano de trabalhar no Brasil e ganhar salários de até R$ 4 mil começa numa agência de viagens da República Dominicana, com a qual todos fecharam negócio, mas de cujo nome nenhum diz se lembrar. É lá que são vendidos os pacotes de imigração ilegal, a preços que vão de US$ 1.000 a US$ 2.600. O roteiro é conhecido: República Dominicana, Panamá e Lima. A partir da capital peruana, o trajeto é feito de ônibus, passando por Puerto Maldonado, até Iñapari, última cidade antes da fronteira com Assis Brasil, porta de entrada oficial ao território brasileiro pela rodovia Interoceânica, que liga o Brasil ao Oceano Pacífico, num trajeto de 1.700 km.
O Brasil dos sonhos dos haitianos não tem crise econômica, é carente de mão de obra e, de quebra, ainda há Ronaldo Fenômeno, ídolo dos jovens haitianos. Mas, em Iñapari, o sonho acaba: o trabalho da agência termina ali, a 113 quilômetros de Brasileia. O percurso pode ser feito de carro ou táxi em uma hora e meia. A diferença entre sonho e pesadelo é saber se a Polícia Federal brasileira permitirá a entrada sem o visto obrigatório, que deveria ter sido emitido no Haiti. Desde o Natal, a fronteira está liberada.
Relatos de roubo em travessia no mato
Quem chegou antes, entre novembro e dezembro, foi vítima de boatos de que a passagem sem visto estava impedida e caiu nas mãos de coiotes. Dois irmãos peruanos cobrariam US$ 50 para levar até a fronteira com a Bolívia, e outros US$ 50 para cruzar com os haitianos dentro da mata, numa caminhada de duas horas. Há quem diga que, para simular dificuldade, a dupla fazia os haitianos andarem em ziguezague. Na fronteira da Bolívia, houve quem cobrasse pedágio para evitar que fossem presos. Mais US$ 50. Os que não tinham dinheiro deixaram malas e objetos de valor.
A pé, carregando malas no meio do mato, haitianos contam ter sido também roubados e mulheres, estupradas. Houve até notícias não confirmadas de haitianos mortos no caminho.
Luciene Chachou, de 24 anos, e Joseph Christine, de 37, vivem o pesadelo. Cada uma pagou US$ 1.000 para vir. Ao chegarem em Iñapari, em dezembro, souberam que a fronteira estava fechada e aceitaram o trabalho dos coiotes. Na mata, diz Luciene, as duas foram agredidas e tiveram seus pertences arrancados. Após o susto, chegaram a Brasileia sem saber por onde começar e foram acolhidas por uma haitiana, que alugara uma casa, enquanto esperava pelo visto. Mas, esta semana, a mulher foi embora.

- Estamos na rua, não sabemos onde ficar - diz Joseph Christine, que só fala crioulo, sentada na praça ao lado da amiga e companheira de viagem.
Com a ajuda de um intérprete, ela conta que não gosta da comida oferecida pelo governo do Acre; acha as condições em Brasileia muito ruins e está decepcionada, porque a agência que vendeu "o pacote" disse a ela que, logo ao chegar, começaria a trabalhar. Há cozinheiros, padeiros, pedreiros e profissionais de todo o tipo entre os haitianos na praça de Brasileia.

O problema é que eles não têm como sair dali. Além da espera pelo visto humanitário, que demora até 45 dias, agora há o medo. No ano passado, grupos de haitianos receberam passagem do governo do Acre para ir até Porto Velho, em Rondônia, onde encontraram trabalho, principalmente ligados à construção de três hidrelétricas. Lá, muitos esperam ganhar dinheiro e seguir para o sonho maior: São Paulo.
Haitianos com diploma universitário ou com dinheiro não ficam no hotel da praça. Alugam casas e andam pelas ruas. Pelo menos 20%, calcula o governo do Acre, são estudantes que buscam vagas em universidades. Muitos deles têm Brasília como destino.
A notícia de um sucesso, como o de Dominique, ou recados da família que ficou no Haiti, de que um ou outro já está estudando ou bem empregado, alimenta a esperança de quem está em Brasileia. Fresner Jeune, de 29 anos já possui CPF e visto temporário, mas diz não ter dinheiro para seguir viagem. E tem muito medo de ficar na rua numa cidade grande. O que faria numa cidade de 11 milhões de pessoas como São Paulo? Quem o ajudaria?
- Você acha que dá para arrumar emprego em São Paulo? - pergunta, com olhar esperançoso.
Assim como Jeune, centenas de haitianos perambulam pelas ruas de Brasileia. O visto humanitário dado pelo governo, por enquanto, termina ali.

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